Nº 03 JANEIRO/FEVEREIRO 97 

 

EDITOR:Arlindo Costa

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Arlindo Costa
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ASSOCIAÇÃO DOS MAGISTRADOS DAS JUSTIÇAS MILITARES ESTADUAIS
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Presidente: DR. GETÚLIO CORRÊA
Vice-Presidente Região Sul: DR. ALEXANDRE ARONNE DE ABREU - RS
Vice-Presidente Região Sudeste: DRA. ROSEANE PINHEIRO DE CASTRO - SP
Vice-Presidente Região Centro Oeste: DRA. MARILZA LÚCIA FORTES - MS
Vice-Presidente Região Norte: DR. FLÁVIO ROBERTO S. DE OLIVEIRA - PA
Vice-Presidente Região Nordeste: DR. NESTOR ALVES DE MELO FILHO - PB
Secretário-Tesoureiro: DR. UNIVALDO CORRÊA - SC





ARTIGOS NESTA EDIÇÃO:

1.Carta de Macapá
2.Jornada Júridica Maranhense
3.A Nova Competência da Justiça Militar
4.Âmbito da Admissibilidade das Interceptações Telefônicas: Crimes com Reclusão
5.Inconstitucionalidade da " Lei Hélio Bicudo "
6.Prisão para Averiguações uma Necessidade Indiscutível
7.O Código Penal Militar, esse Grande Desconhecido
8.Sursis na Justiça Militar
9.O Reconhecimento pela Justiça Militar da Infração disciplinar
10.Ser e Não Ser
11.O Comandante-em-chefe
12.Justiça Militar: Habeas Corpus; uma decisão, um reconhecimento
13.Lei Nº 9.299/96


EDITORIAL

O Direito Militar de há muito deixou de significar área jurídica interessante apenas a seus destinatários diretos - os militares - tendo extrapolado sensivelmente os limites da caserna. Já não se limita, o ramo especializado do Direito, à apreciação dos delitos ditos tipicamente militares, especialmente na esfera estadual, cujos destinatários são as Polícias Militares e Bombeiros Militares. Estas, no exercício de seus misteres, atuam em permanente contato com a população e, freqüentemente, deste contato - não raras vezes repressivo, até pela natureza de sua atribuições - surgem demandas inúmeras, processadas e julgadas pelo foro castrense.

Situações-padrão de tal circunstância são as constantes ocorrências com manifestações públicas, ocupações de terras e prédios, grandes eventos esportivos, artísticos ou de qualquer outra natureza. Todos, com participação fiscalizadora e às vezes repressiva da Força Pública, e da qual repita-se, seguidamente decorrem processos a serem solucionados pelo foro judicial militar.

Destarte, com o incremento das atividades das Polícias Militares, e considerando a competência constitucional (art. 125 § 4º CF) para o processo e julgamento dos delitos cometidos pelos seus integrantes, em serviço, o volume dos procedimentos atribuídos ao foro especializado militar tem crescido sensivelmente. Em conseqüência, incrementada, também, a busca, naqueles foros, de profissionais minimamente orientados sobre as especificidades do Direito Militar, e as características da própria Justiça Militar.

De outro lado, as carreiras jurídicas, especialmente a Magistratura, Ministério Público e a Advocacia (Pública ou Privada), ao menos no âmbito estadual, encontram-se umbilicalmente ligadas, no que se refere à Justiça Militar e Justiça Comum: na imensa maioria dos Estados da Federação a carreira é única, vale dizer, o mesmo Juiz, Promotor de Justiça e Defensor que atuam em Varas da Justiça Comum, o fazem, igualmente, na Justiça Militar, por classificação ou designação. E, mesmo naqueles Estados em que há carreiras independentes - o que ocorre em poucos, e apenas na Magistratura - o relacionamento funcional é bastante próximo, inclusive no que se refere à instrução processual.

Nesse espectro, inclusive a própria Justiça Militar tem sido alvo de seguidas proposições legislativas - algumas honestas, outras com flagrante intenção ou fundamentação maliciosa -, a mais recente datada de agosto passado, e que remeteu para o Tribunal do Júri o julgamento dos delitos dolosos contra a vida cometidos pelos militares contra civis (Lei 9299/96). E tais alterações, bem como a própria estrutura básica do Direito Penal e Processual Penal Militar precisam ser do conhecimento, ainda que de forma mínima, do bacharel em formação.

Em assim, uma genérica notícia sobre a estrutura da Justiça Castrense, regras de funcionamento, competência, composição, institutos penais e processuais - enfim, noções básicas sobre o Direito Penal e Processual Penal Militar, e Organização Judiciária Militar - salientam-se em importância na preparação dos futuros Juízes de Direito, Promotores de Justiça e Advogados.

Ante tal quadro sócio-jurídico-político, parece-nos, já, da mais alta conveniência que as Instituições de ensino jurídico universitário, no Brasil, passem a incluir, em seus currículos programáticos as disciplinas de Direito Penal Militar, Direito Processual Penal Militar e Organização Judiciária Militar. Ou, ao menos, que sejam inseridos tópicos a elas referentes, nos programas de Direito Penal e Processual Penal e de Organização Judiciária.

A partir de agora, portanto, a AMAJME desfralda essa bandeira, e, na luta, relevantíssimo papel desempenhará a nossa Revista, a qual já se encontra sendo remetida a grande número de Faculdades de Direito, Escolas de Magistratura e Ministério Público, e diversas outras entidades responsáveis pela formação e o aperfeiçoamento de nossos operadores jurídicos.

Reiteramos, no advento da empreitada, a necessidade de colaboração efetiva de todos os associados e demais interessados no aprimoramento e aperfeiçoamento das lides forenses.

GETÚLIO CORRÊA
PRESIDENTE

ENCONTRO DE COLÉGIO PERMANENTE DE PRESIDENTES DE

TRIBUNAIS DE JUSTIÇA DO BRASIL

CARTA DE MACAPÁ

O Colégio Permanente de Presidentes de Tribunais de Justiça do Brasil, reunido em Macapá, Amapá, após amplo debate das reformas constitucionais em andamento, da operação dos Juizados Especiais e dos sistemas de recrutamento da Magistratura, consciente da importância dos Justiças Estaduais para preservar o primado da Constituição, o Estado de Direito e o Princípio Federativo, preocupado com a indeclinável necessidade de manter a autonomia do Poder Judiciário e dedicado, como sempre, ao aprimoramento de seu desempenho na prestação jurisdicional, manifesta uma vez mais à Nação sua inquietude e desconforto em face de propostas e iniciativas desafinadas desses princípios e objetivos, nos termos que se seguem:

1. Lamenta constatar o propósito progressivamente manifesto de reduzir a importância e a influência da função judiciária na vida institucional da Nação. O crescente agigantar-se do Poder Executivo ameaça e deprime o amplo exercício das demais atividades igualmente essenciais ao funcionamento do Estado. A concentração de poder já se vais fazendo ameaçadora à normalidade institucional e à supremacia da lei.

2. Concretamente, preocupa-se com a visível inclinação dos governantes a subordinar o sistema constitucional aos projetos de governo, ao invés de se ajustarem tais programas à ordem jurídica preexistente, de tal sorte que interesses momentâneos e contingentes, ainda que talvez legítimos, passam a frente dos objetivos nacionais permanentes. Essa mesma distorção de precedência estimula a insubmissão à lei e o desprestígio, até pelo Poder Público, das decisões judiciais.

3. Identifica, compreende e faz sua agrave insatisfação da magistratura, neste momento mobilizada em todo o território nacional pela busca de tratamento condigno, de respeito, de reconhecimento e de condições mínimas para o bom desempenho de sua missão constitucional. Associando-se a essa inquietação, o Colégio não busca a preservação de privilégios de classe, mas o restabelecimento das mínimas condições de atratividade da carreira. Reafirma, outrossim, seu compromisso histórico e indeclinável com a defesa da primazia do Direito, sem a qual não há ambiência para o convívio democrático, nem perspectiva para o progresso, nem garantia de liberdade.


JORNADA JURÍDICA MARANHENSE

SÍNTESE

1. SÃO LUÍS-MA

Na iminência de tornar-se Patrimônio da Humanidade, São Luís matém inteira sua paisagem de pedra, cal, azeite e azulejos, de refinada arquitetura colonial, emoldurada, talvez, com o primeiro arco-íris que deixou rastros de luzes e cores no céu de anistia e no chão da Praia Grande, onde a cidade nasceu, construída com engenharia falada em nobres idiomas e confusos dialetos, tecida com a leveza de mãos calosas e escravas; e dessa antiguidade nada prescreveu nem comprometeu, séculos depois, o urbanismo selvagem de elevados, pontes, rotatórias; nem a contra-mão do trânsito; sequer se dividiu a cidade em antiga e moderna, no seu sentido histórico, porque: suas belíssimas Igrejas, a maioria data dos séculos XVII e XVIII quando Aluysio Azevedo escreveu “O Mulato” e desenvolveu-se através de gerações de escritores e poetas que escreveram com letras de ouro a cultura de São Luís; provincial, histórica, sensível, entretanto no alvoroço da maternidade e revê a memória que guarda sua cultura jurídica, e nela, incorpora os notáveis magistrados e conferencistas da I JORNADA JURÍDICA e os elege CIDADÃOS HONORÁRIOS, abraçando-os com a leveza de sua amizade inscrita em sua paisagem silenciosa de azulejos e sobradãos, ladeiras e escadarias, afeto e poesia.

2. ENTIDADES PROMOTORAS

A ASSOCIAÇÃO DOS MAGISTRADOS DO MARANHÃO, A ASSOCIAÇÃO DOS MAGISTRADOS DAS JUSTIÇAS MILITARES ESTADUAIS E A JUSTIÇA MILITAR DO ESTADO DO MARANHÃO, promoveram a I JORNADA JURÍDICA MARANHENSE, realizada em São Luís, em novembro de 1996, evento que se constitui num Ciclo de Trabalho indicativo do pensamento político e social da comunidade jurídica brasileira; um culto à inteligência da Justiça na linguagem dos princípios e da consolidação do Direito que se constitui, na modernidade da sociedade civil, o privilégio da cidadania, a conquista de direitos democráticos e a prática de deveres sociais e humanistas.

A I JORNADA JURÍDICA MARANHENSE revestiu-se de um trabalho de qualificação social e política sobre as Ciências Jurídicas, que pretende dar à comunidade judiciária conhecimento do processo de evolução da disseminação do Direito Civil e Penal, em escala gradual da formalização modernizada, da legislação igualitária que nivela a sociedade em seus aspectos sociais e humanos.

3. SENADOR JOSÉ SARNEY

Presidente do Congresso Nacional

O SENADOR JOSÉ SARNEY disse na I JORNADA JURÍDICA MARANHENSE que a grande expectativa política da sociedade brasileira é exatamente a consolidação do estado de Direito, a partir da Constituição Parlamentarista de 1988, que rege um Governo Presidencialista. Então o Governo é híbrido, diz o Senador; e como exercê-lo, pergunta; se prevalece um artifício inventado como indicador do Presidencialismo que se faz autoritário dentro de um cérculo também Legislativo e Judiciário. Esses atos, de autonomia conivente com interesses intempestivos, pretendem assegurar a discutível governabilidade, que na verdade, prende-se no consenso parlamentar e na verdade judiciária. As Medidas Provisórias, efêmeras no seu alcance, imediatas e silenciosas, quebram o Estado de Direito, diz o Senador Sarney, porque são atos alheios à unanimidade e até ao conhecimento da opinião pública, e seus efeitos, pelo caráter aleatório que assumem, não configuram a constitucionalidade do Presidencialismo que se decompõe, enquanto busca as Reformas essenciais à natureza do Regime e que sirvam de vertentes democráticas ao Estado de Direito. Ocorre que, enquanto as Medidas Provisórias se proliferam, congestionando os deveres do Governo, as reformas pretendidas, pela sua intensão premeditada, convergem no sentido avesso às exigências de conservação político-administrativas dos Poderes, que no seu relacionamento histórico, desde o começo da República, afastaram, muitas vezes, da eminência do Estado de Direito; por exemplo, quando Getúlio Vargas, por Decreto, anulou uma sentença do Supremo Tribunal Federal. É temerário afirmar que Medidas Provisórias e Reformas de quaisquer propósitos políticos possam imediatamente transfigurar o Executivo, dando-lhe a pertinência democrárica própria do Estado de Direito. Vê-se com clareza um estado probatório que privatiza com a mesma naturalidade com que edita suas Medidas Provisórias.

O PARLAMENTARISMO inscrito na Constituição de 1988 que serve de rumo e substância Legislativa ao Executivo em toda a extensão das ações governamentais é suficiente para esclarecer que esse sistema político, com estrutura partidária sólida e ideológicamente direcionada, é capaz de conduzir a Administração Pública com a visão aberta dos caminhos que levam o país ao espírito da cidadania que coletiviza as responsabilidades de administrar. O Presidencialismo inscrito nessa Constituição comete ao Executivo a indisponibilidade de transitar politicamente no seu próprio círculo de decisão, advindo dessa circunstância, desconfortáveis posicionamentos e, até, na maioria das vezes, ocorrer as incertezas que contrai o poder de mando. Essa contradição nominal de regimes diferenciados e praticada em nome do neo-liberalismo assumida como resultante de efeitos diferenciados entre Parlamentarismo e Presidencialismo, desmanda o Poder Executivo fazendo-o recorrer à penitência das Medidas Provisórias e levanta a questão da desigualdade de Poderes e escala de ascendência desconfiada, entre si. O relacionamento político entre os Poderes não esconde da sociedade os excessos contraditórios, a demanda inflacionária do poder, cerceando a eminência da Democracia, a plenitude do Estado de Direito. Precisa-se da excelência dos Poderes, fundamentada na autoridade que lhes compete, segundo a ordem democrática, dentro da prerrogativa do Estado de Direito. Precisa-se do Executivo liberado dos hábitos imperdoáveis da ausência por omissão; Precisa-se do Legislativo sensível ao poderio das Leis igualitárias, à demanda histórica do sonho da sociedade dispersa pelos valores perdidos. Precisa-se do Judiciário fortalecido pelo braço imune do poder de decisão, sem a refrega do confronto divisório, com infra-estrutura que tenha a solidez e a validade de todos os direitos, com afinidades intrínsecas com a sociedade. Precisa-se.

O SENADOR JOSÉ SARNEY concluiu seu vigoroso discurso político dizendo em linguagem memorial de palavras nativas do seu pensamento cultural que no Maranhão não se faz estátuas de políticos nem de heróis; faz-se em homenagem a intelectuais - escritores e poetas - porque o Maranhão tem o maior respeito pela espiritualidade, pela cultura, pela sua história; e lembra o padre Vieira na inauguração da Igreja de Nossa Senhora das Mercês, há 354 anos, ao pregar o Sermão de São Pedro, quando disse que no Maranhão os sinos tocam sempre, na alegria e na tristeza; e não esquece o poeta Sarney de repetir, como cumprimento a quem chega a São Luís, a frase do navegador português Simão Estácio da Silveira, dita no século XVII: “Das terras que Portugal conquistou, o melhor é o Brasil, agora, o Maranhão é o Brasil melhor”.

4. MINISTRO SEPÚLVEDA PERTENCE

PRESIDENTE DO STF

O MINISTRO SEPÚLVEDA PERTENCE, Presidente do Supremo Tribunal Federal declarou, durante a I JORNADA JURÍDICA MARANHENSE, que “... O Judiciário é um Poder conservador, mas, quem dialoga hoje, como eu tenho feito com a magistratura em todo o país, percebe sobretudo nas áreas mais jovens, a angústia da sociedade com os grandes problemas e os grandes desafios deste final de século em todo o mundo e no Brasil, particularmente, na iniquidade do nosso perfil social...”; sobre a crise de funcionalidade do Poder Judiciário, disse o Ministro Sepúlveda Pertence: “... A crise de funcionalidade generalizada nos serviços públicos do Estado é também do Poder Judiciário com dimensões que superam muito os problemas administrativos; é que a legitimidade do judiciário é singular e não tem os mecanismos de alívio dos Poderes políticos; a nossa legitimidade não está no voto popular - nem pode estar -, na medida em que a função do judiciário na democracia é precisamente a de opor controle de limites ou abuso do poder da maioria, de que são instrumentos os Poderes Políticos que nos regimes democráticos encontram na renovação periódica de mandatos ao menos um renascer de esperanças que revigora, embora temporariamente, a legitimação. O Judiciário, por suas características tem e deve ter um quadro profissional, mas isso nos custa não ter o alívio da renovação periódica de esperanças; só nos resta a reconquista da credibilidade e, com ele, a conquista da funcionalidade...”

5. SENADOR EDISON LOBÃO

O Senador Edison Lobão, ex-Governador do Maranhão, jornalista político de expressão nacional, pronunciou-se na abertura da I JORNADA JURÍDICA MARANHENSE, qualificado como prioridade do Estado de Direito as ações de reformulação da estrutura organizacional do Poder Judiciário, mencionando a condição de explicidade da Justiça a nível de cidadania consolidada pela conquista de Direitos individuais. O Senador discursou sobre a Lei de Imprensa, precisamente no relacionamento com o Poder Judiciário, levantando-se a questão da força da comunicação, desde a nobreza da formação da opinião pública, através da precisão da informação, até os deslises da notícia improcedente, tendenciosa ou de falsa ideologia, assegurando dever prevalecer o senso comum da justiça nesse relacionamento.

6. SAULO RAMOS

Ex-Ministro da Justiça

A REFORMA DO PODER JUDICIÁRIO proposta pelo ex-Ministro da Justiça e anunciada na I JORNADA JURÍDICA MARANHENSE trata da Constituinte de 1988; do Conselho Superior da Magistratura; do Controle Interno, único detentor da legitimidade das Garantias do Magistrado, servidor público substancialmente diferenciado dos demais; da Súmula Vinculante; do Controle em tese da Legalidade; das Reformas urgentes de preceitos obsoletos e vencimentos do Juiz, questão institucional de suma seriedade; temas a respeito dos quais, diz o autor não ser tudo o que pensa nem o que concebe como ideal, mas que resulta de uma reflexão consciente sobre a realidade brasileira e que sua proposta é um resumo daquilo que acha ser possível obter-se do atual Congresso Nacional, reserva, que evidentemente reduz suas pretensões de oferecer modelos mais avançados e evoluídos, ou os que podem ser frutos apenas de alguns momentos românticos da sua capacidade de sonhar, que ainda conserva.

7. Drª NELMA SARNEY (COORDENADORA)

da I JORNADA jURÍDICA MARANHENSE

“Não há Democracia sem Parlamentarismo livre”; diz o pensamento político do Senador José Sarney; não há encanto na beleza de São Luís se não houver o dedo em riste da poesia; dizemos, data venia, ao poeta José Sarney; não há histórias contadas com a segurança da intimidade, sem o Fogo dos Marimbondos, sem as Águas ao Norte sem o Mar e seu Dono.

Quando Moisés escreveu os mandamentos da Lei de Deus no Monte Sinai, Cristo havia inscrito na cruz da ressureição, a doutrina da fé e do Direito; Raças, povos, etnias que formaram a civilização, fizeram seu Código de Honra; Imperadores, Reis, Papas e Guerreiros escreveram com guerras e religião, o processo de evolução da Humanidade com a conquista dos direitos; Salomão fez a lógica da Justiça; Herodes e Átila, flagelaram o planeta com o tropel negro dos cavalos do medo; Os profetas rezaram pela eternidade da fé, que chegaria ao Direito e à Justiça; O Brasil Colonial e Imperial viveu a Majestade da Justiça Burguesa; O Brasil Republicano fez-se Democrata com as primeiras lições de Ruy Barbosa e Clovis Bevillaqua; o Presidente do Congresso Nacional; o Presidente do Supremo Tribunal Federal, o Presidente do Superior Tribunal de Justiça, Ministros, Desembargadores, Juízes Civis e Militares, Procuradores, Promotores, Advogados, Acadêmicos, trouxeram à I JORNADA JURÍDICA MARANHENSE, a palavra verídica que assume o entendimento da magistratura e da sociedade a respeito da renovação constitucional do Poder Judiciário.



A Nova Competência da Justiça Militar
RENATO DE MELLO JORGE SILVEIRA
Advogado em São Paulo
Mestrando em Direito Penal na FADUSP

Poucos assuntos despertam tão calorosos debates quanto o relativo à competência da Justiça Militar. Muito embora já fosse presente nos tempos de Roma, o conceito de Justiça Militar, confundido com o de foro privilegiado, causou, numa época mais recente, diversas manifestações contrárias à sua aplicação e mesmo quanto à sua própria existência.

O rígido tratamento previsto nos Artigos de Guerra do Conde Lippe1 bem como as observações de RUI quanto a verdadeiros crimes de lesa justiça ocorridos no processo Dreyfus (o qual ele acompanhou e relatou em suas Cartas da Inglaterra) trouxeram, à realidade nacional do século XIX, uma verdadeira cautela pelos ritos judiciais aplicáveis aos membros da caserna2 . Justificando sua perplexidade quanto ao julgamento do capitão francês, assim se manifestava BRUNO WEIL: “é coisa monstruosa e única na história da justiça moderna, justiça de gabinete da pior linhagem...”.3

Por um motivo ou por outro, percebe-se, atualmente, em diversos países, uma tendência em, senão se restringir, ao menos se contestar os foros militares. Exemplo claro disso, em terras européias, foi a extinção, em 1982, do Alto Tribunal das Forças Armadas francês, bem como dos Tribunais Permanentes dos Corpos de Tropa4 .

No Brasil, a situação tornou-se ainda mais conturbada quando, a partir dos últimos anos do século passado, e do primeiro deste, estendeu-se a aplicação da legislação militar aos membros da forças policiais estaduais, criando-se assim, os primórdios da Justiças Militares estaduais5 como hoje são conhecidas. Não previstas constitucionalmente, senão a partir da Carta Magna de 1946 (artigo 124, XII), sempre se contestou a competência destas para o julgamento dos milicianos6 .

Criada estava, assim, tormentosa situação, a qual as leis e os Tribunais ora entendiam dever ter maior, ora uma menor competência. A aparente solução dada, de um lado pela Emenda constitucional 7/77, e de outro pela Súmula 90 do Superior Tribunal de Justiça, foi por muitos criticada. Ainda que agora com previsão constitucional (a qual se repetiu na Constituição de 1988, em seu artigo 125, parágrafos 3º e 4º), uma das mais freqüentes críticas diz respeito à competência das Justiças Militares estaduais para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida, um aparente cerceamento à competência constitucional do Tribunal do Júri7 .

De uma forma ou de outra, atendendo a apelos daqueles que se digladiavam contra este foro especial, promulgou-se, a 7 de agosto de 1996, a Lei nº 9.299, a qual pretendeu dar solução ao aparente conflito das competências constitucionais. Modificou-se o próprio conceito de crime militar (inserido no artigo 9º do Código Penal Militar), excluindo, dessa forma, os crimes dolosos contra a vida praticados contra civis. Alterou-se também, o disposto no caput do artigo 82 do Código de Processo Penal Militar, além de fornecer-lhe um parágrafo segundo, até então inexistente. Assim, conforme a nova disposição legal em se tratando de crimes dolosos contra a vida praticados contra civis, após a realização de inquérito policial militar, realizado pela autoridade policial militar judiciária, deverá a Justiça especializada encaminhar os autos do inquérito à Justiça comum.

O que se fazer, entretanto, com os processos-crimes-militares já iniciados? A Lei nº 9.299/96 estabelece que deverão ser encaminhados à Justiça comum os autos de inquérito policial militar. Silenciou quanto aos processos já em curso. Deverão eles também ser remetidos à Justiça comum ou deverão permanecer na Justiça Castrense?

Poder-se-ia dizer que a regra estampada no art. 2º do Código de Processo Penal, consagrada pelo princípio do efeito imediato, a qual estabelece a imediata aplicação da lei processual, sem prejuízo dos atos realizados sob a vigência da lei anterior, implicaria na sumária remessa dos autos de processo penal militar no estado em que se encontrem. Seria essa contudo, a real e devida forma de se aplicar o princípio do tempus regit actum? Seria esse o correto meio de transferência da competência de processos já em curso, de uma justiça à outra?

A Lei nº 9.299/96 é clara quando estabelece que devam ser remetidos à Justiça comum todos os inquéritos policiais militares a partir do advento da nova lei. Em princípio, não pretendeu ela estender sua aplicação aos processos já em tramitação.

Não se pretendeu, repita-se, mudar o andamento dos processos já em curso. Depois de recebida a denúncia no foro militar, por parte do juiz-auditor, iniciado está o processo penal militar, que guarda peculiaridades específicas e particulares, diversas, até mesmo em termos recursais, daquelas do processo penal comum. Nos crimes dolosos contra a vida, permite a lei castrense que o Tribunal de segunda instância reforme as penas estabelecidas em primeiro grau, quer aumentando-as, quer diminuindo-as, quer condenando os que haviam sido absolvidos, quer absolvendo os que haviam sido condenados, sendo que o mesmo não ocorre na Justiça comum. Vale dizer, o Tribunal de Justiça não é competente para rever decisões soberanas do Júri, enquanto que decisões do mesmo porte podem ser reformadas na Justiça Militar.

Que se dizer então, dos embargos infringentes interpostos após a Lei 9.299/96? E quanto aos embargos de declaração? Quem seria o responsável para apreciá-los? Sob que rito processual? Parece que, necessariamente, deveriam eles ser analisados e julgados conforme a lei processual segundo a qual se deu o julgamento inicial, ou seja, segundo a lei processual penal militar.

Hermeneuticamente, parece claro ter sido o objetivo do legislador evitar tais problemas, mencionando, assim, somente o envio de inquéritos policiais militares à Justiça comum. Outro destino seria dado aos processos já em curso: deveriam eles continuar sob a competência castrense8 . Isso se torna mais claro e evidente, quando se percebe que a natureza jurídica da Lei nº 9.299/96 é híbrida, não sendo ela pois, somente de caráter adjetivo, mas também substantivo.

Várias são os motivos para se admitir tal assertiva. É fato que, tendo-se modificado a definição penal militar de crime, tornando agora os crimes dolosos contra a vida praticados contra civil sujeitos à Justiça comum, isso implica em uma situação penalmente mais severa aos réus. A Lei nº 8.930 de 6 de setembro de 1994 incluiu, no rol dos crimes hediondos, os homicídios praticados em atividade típica de grupo de extermínio, ainda que cometido por um só agente, e os homicídios qualificados. Assim, caso processos-crimes-militares, referentes a tais delitos, iniciados após a Lei 8.930/94, fossem remetidos à Justiça comum, isso implicaria na sua conseqüente qualificação como crime hediondo. Ocorre que inexiste, no âmbito castrense, a figura do crime hediondo. Assim, uma modificação de competência em processos já iniciados poder-se-ia consistir em uma novatio legis in pejus, acarretando sanções de caráter verdadeiramente penal que, até então, não eram previstas (como, por exemplo, a impossibilidade de anistia, graça, indulto, fiança ou liberdade provisória, bem como o necessário cumprimento da pena em regime fechado).

Outra causa para a adesão à assertiva em xeque, e com certeza esta com um caráter penal mais evidente, é representada por penas mais severas da legislação penal comum, para o homicídio doloso praticado contra pessoa menor de quatorze anos. O Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069/90) previu, em seu artigo 263, nova redação ao artigo 121, parágrafo 4º, do Código Penal, aumentando-lhe a pena de um terço, caso fosse o crime praticado contra menor de quatorze anos. Nada dispôs, entretanto, quanto à lei penal militar. Continua ela aplicando penas, indiferentemente à idade da vítima. Caso venha a ocorrer assim, a transferência de competência das justiças quanto a um crime que se enquadre na situação acima mencionada, é flagrante o prejuízo que o réu virá a sofrer. Quid juris?

É regra de direito material o princípio da anterioridade, tipificado no artigo 1º do Código Penal (nullum crimen, nulla poena sine praevia lege). Em outras palavras, configurado está o princípio da irretroatividade da lei penal. Este princípio, contudo, admite exceções, vez que isso só se aplica à lei mais severa que a anterior, pois a lei nova, desde que mais benigna (lex mitior) irá alcançar fato praticado antes de sua vigência. Nessa mesma linha de raciocínio, é de se perceber que, conforme expresso na Constituição Federal (artigo 5º, XL), não deverá a lei penal retroagir, salvo para beneficiar o réu. Em vindo à tona lei mais dura que a anterior (lex gravior), não alcançará ela fatos anteriormente praticados9 . Consagra-se assim, o princípio da ultratividade da lei mais benigna. Não seria pois, o caso de se entender que deve a lei penal militar, nas situações supra mencionadas, imbuir-se de um caráter de extratividade, não só em benefício dos réus, mas da própria Justiça?

O artigo 1º da Lei nº 9.299/96, alterou o conceito penal de crime militar. Aplicando-se o princípio da anterioridade da lei penal, como admitir-se que passem os crimes dolosos contra a vida praticados contra civil para a esfera da Justiça comum, onde, em termos penais e processuais, sejam eles mais duramente tratados? CARLOS MAXIMILIANO10 , versando quanto aos efeitos considerados mais benignos aos indiciados, era claro em afirmar que os critérios da aplicação benéfica (mitius) residem no interesse dos mesmos. Dentre estes, seria de se julgar mais branda a lei que atribuiu maiores benefícios aos réus11 .

Mesmo que se considerem as ocorrências dos crimes hediondos como puramente de direito adjetivo, seus reflexos no campo substantivo são perceptíveis. As penas mais espartanas do Código Penal comum após as alterações do Estatuto da Criança e do Adolescente, entretanto, não parecem deixar dúvidas quanto à proibição da migração à Justiça comum dos processos já instalados. Vê-se que, como o que ocorreu foi uma alteração em artigos penais e processuais da lei especial por parte da Lei 9.299/96, parece ter o legislador bem agido, tentando suprimir quaisquer dúvidas vindouras à publicação da lei.

Sem se entrar no conflituoso campo de defesa ou de ataque à Justiça castrense, torna-se necessária a indagação de como se proceder com os processos (militares) já iniciados. Ora, se fosse intenção da lei, pura e simplesmente, transferir todos os processos de crimes dolosos contra a vida praticados por militares contra civis para a Justiça comum, assim teria sido mencionado na mudança praticada no artigo 82 do Código de Processo Penal Militar. Pelo contrário, previu-se somente o envio dos inquéritos ainda não transformados em processos.

Admitindo-se que a lei não deve conter palavras inúteis, outra não pode ser a orientação, além de se entender que devam, os atuais processos, ser julgados pela legislação penal e processual penal militar, sendo que os processos futuros deverão, estes sim, ser da competência da Justiça comum. A interpretação da lei penal, dá-se segundos os vários processos de Hermenêutica. Só se compreende, porém, os casos que ela especifica. Não se pode entendê-la por analogia ou paridade, para qualificar faltas reprimíveis ou lhes aplicar penas; não se conclui, por indução, de uma espécie criminal estabelecida para outra não expressa, embora ao juiz pareça ocorrer a segunda hipótese a mesma razão de punir verificada na primeira12 .

Não se pretende aqui impor posições, mas somente levantar considerações em busca de uma mais correta aplicação da lei penal. O debate deve ocorrer de forma desapaixonada, cabendo aos Tribunais superiores decidir a forma com que deve se dar a imperiosa restrição da competência da Justiça Militar. Deverão eles, apercebendo-se de todos os detalhes que envolvem a questão, pronunciar-se, dando, assim, a resposta do justo, mesmo que com isso se acabe contrariando posições políticas mais extremadas13 .

Alvo de infindáveis discussões, poucos são os que notam as filigranas do direito penal militar. Poucos são os que a ele dedicam estudo e observação. Muito mais falado do que conhecido, é de se mencionar aqui, por fim, a indagação proferida por LEITÃO DA SILVEIRA14 , quanto à real posição do direito penal militar frente ao complexo do horizonte jurídico: “será a lei penal militar instrumento da autoridade marcial, ou simplesmente a lei penal envolta em clâmide, escudo e casco?”.

1.Quanto às origens do Direito Penal Militar brasileiro, ver, entre outros, BANDEIRA, Esmeraldino. Direito, Justiça e Processo Militar. Rio de Janeiro, Livraria Francisco Alves, 1919; CARPENTER, Luis. O Direito Penal brasileiro e o Direito Penal de outros povos cultos. Rio de Janeiro, Livraria Cruz Coutinho, 1914; COSTA, Álvaro Mayrink da. Crime Militar, Rio de Janeiro, Editora Rio, 1978; REICHARDT, H. Canabarro. Esbôço de uma História do Direito Militar Brasileiro. Rio de Janeiro, Jornal do Commercio - Rodrigues & C., 1947;

2. É de EVARISTO DE MORAES frase que ilustra a cautela mencionada. Em 1898, ao escrever contra os Artigos de Guerra, era ele contundente ao afirmar que, “incontestavelmente, é essa a tendência do espírito moderno: reduzir o arbítrio e a bruteza na legislação militar, aproximando-a da civil, o quanto possível”. MORAIS, Evaristo de, apud LOBO, Helio. Sabres e Togas: a autonomia judicante militar. Rio de Janeiro, |s.e.|, 1960, pg. 91.

3. WEIL, Bruno, apud SOARES DE MELLO, José. “Rui e a Questão Dreyfus”. Revista da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, vol. LXII. São Paulo, 1968, pg. 86.

4. Ainda assim, é de se mencionar que a Justiça Militar é encontrada em quase todos os países do mundo, com algumas exceções, como Japão, Alemanha, Áustria. ROMEIRO, Jorge Alberto. “Proposta de Alteração da Lei de Organização Judiciária Militar da União e dos Estados”, in Anais do V Congresso Nacional da Justiça Militar. Florianópolis, |s.e.|, 1995, pg.67.

5. É de se destacar que, ainda que Conselhos Criminais, ou Conselhos de Guerra já fossem presentes em diversos Estados desde a metade do século XIX, não pertenciam eles, à organização judiciária nacional. Tratava-se de um julgamento praticamente administrativo, limitado inicialmente a crimes de deserção, podendo suas decisões ser revistas pelo Governador do Estado. História da Justiça Militar do Estado de São Paulo. São Paulo, Imprensa Oficial do Estado, 1976, pg. 15; ASSIS, Jorge Cesar de. Justiça Militar Estadual. Curitiba, Juruá Editora, 1992; pg. 37; MORO, Mariante Hélio. Crônica da Brigada Militar Gaúcha. Porto Alegre, Imprensa Oficial Editora, 1972, pg. 371. Mesmo depois de criadas formalmente as Justiças Militares estaduais, só se pôs fim à questão com o advento da Constituição de 1934, a qual passou, finalmente, a tratar os juízes e os Tribunais militares como órgãos do Poder Judiciário.

6. Data de 30 de outubro de 1909 o primeiro habeas-corpus levado ao Supremo Tribunal Federal, contestando a aplicação das penas contidas no Código Penal Militar do Exército e da Armada aos membros das forças estaduais (H.C. nº 2773).

7. A esse respeito, é de se lembrar que “em certos casos, a competência constitucional do Tribunal do Júri pode cumular-se com a competência por prerrogativa de função, também constitucional. A linha da jurisprudência brasileira é correta: tratando-se de duas competências constitucionais, deve prevalecer garantia da prerrogativa por função, específica, sobre a genérica da instituição do Júri para o processo e julgamento dos crimes dolosos contra a vida”. GRINOVER, Ada Pelegrini; FERNANDES, Antonio Scarance; GOMES FILHO, Antonio Magalhães. As Nulidades no Processo Penal. São Paulo, Malheiros Editores, 1993, pg. 51.

8. Não parece ter havido no caso, nem deslizes ou tropeços legislativos, muito menos redações apedeuticas. A mens legis é clara, bastando ter olhos de ver, para perceber-se seu verdadeiro sentido.

9. MIRABETE, Julio Fabrini. Manual de Direito Penal, vol. 1. São Paulo, Editora Atlas, 1991, pg.58. Nesse sentido, ver também TOLEDO, Francisco de Assis. Princípios Básicos de Direito Penal. São Paulo, Editora Saraiva, 1991, pg. 30 e ss.

10. MAXIMILIANO, Carlos. Direito Intertemporal ou Teoria da Retroatividade das Leis. Rio de Janeiro, Livraria Freitas Bastos, 1955, pg. 295.

11. MAXIMILIANO, Carlos. Op. cit., pg. 297.

12. MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e Aplicação do Direito. Rio de Janeiro, Livraria Freitas Bastos, 1957, pg. 397.

13. Tudo conspira contra a independência do magistrado. Não só as pressões externas, materiais, diretas e indiretas, mas também aquelas que brotam do seu íntimo: as ambições muitas vezes irresistíveis; “Qu’importe qu’on ne puisse contraindre un juge si on a mille mouyens de le séduire’. Por isso a magistratura é, às vezes, comparada ao sacerdócio, pois também o magistrado deverá fugir das ambições materiais, deverá conter-se diante das seduções mundanas”. SILVA, Octacílio Paula. Ética do Magistrado à luz do direito comparado. São Paulo, Editora Revista dos Tribunais, 1994, pg. 226.

14. SILVEIRA, Octávio Leitão da. Salgado Martins e o Direito Penal Militar. Ciência Penal, nº 3. São Paulo, Editora Convívio, 1975.


ERRATA

Na edição Nº 2 da Revista DIREITO MILITAR houve alguns erros o qual estamos informando a correção:

1) Página 11 - Título - o nome correto do autor da matéria é:
"GUALTER GODINHO"

2) Página 11 - Título correto é:
"INVESTIDURA MILITAR DA POLÍCIA DE ORDEM PÚBLICA OSTENSIVA"

3) Página 35 - Título - o nome correto do autor é :
"MARCIO LUIS CHILA FREYSLEBEN"


Âmbito da Admissibilidade das Interceptações Telefônicas: Crimes com Reclusão
LUIZ FLÁVIO GOMES
Juiz de Direito em São Paulo e Mestre em Direito Penal pela USP

Não será admitida a interceptação telefônica, diz o art. 2º, inc. III, da lei 9.296/96, “quando o fato investigado constituir infração penal punida, no máximo, com pena de detenção”. Os crimes, como regra geral, são punidos com pena de reclusão ou detenção e às vezes cumulativamente vem cominada a pena de multa; as contravenções são punidas com prisão simples ou multa. Embora o art. 2º, “caput”, utilize a expressão “infração penal”, é certo que o âmbito de admissibilidade da interceptação telefônica é muito menor do que parece. Não é qualquer infração penal que a autoriza. Em princípio, apenas e exclusivamente a punida com “reclusão”. No jogo do bicho, por exemplo, sendo contravenção, não é possível a interceptação.

Referindo-se a lei a “fato investigado”, uma vez mais, confere legitimidade à interpretação no sentido de que não existe entre nós a mínima possibilidade para a interceptação de prospecção, isto é, para averiguar, de forma genérica, se uma determinada pessoa estaria praticando algum crime em sua vida. Urge a existência de um fato precedente, fato ocorrido e que esteja sendo investigado (ou sobre o qual já se conta com indícios fortes e evidentes). Só existe interceptação pós-delitual, nunca pré-delitual. E não é qualquer fato que justifica a interceptação: impõe-se que “constitua infração penal”, é dizer, única e exclusivamente os fatos típicos, descritos em lei previamente, é que autorizam a medida cautelar. Pouco importa se o delito vem descrito no Código Penal ou em Lei Especial (Código Penal Militar, por exemplo): o relevante é a pena cominada, pena em abstrato máxima. A pena máxima cominada, destarte, é a que delimita o âmbito de admissibilidade da interceptação telefônica.

Não interessa, de outro lado, se a infração é da competência da justiça comum ou especial (militar, eleitoral). Irrelevante, ademais, se a ação penal é pública ou privada (alguns crimes sexuais, por exemplo). O que conta é a pena máxima cominada. Na hipótese de crime de responsabilidade (lei 1.079/50, Decreto-lei 201/67 etc.), a sanção prevista é o “impeachment” (perda do cargo). Consoante Mirabete 1 , não caberia a interceptação telefônica nessas infrações, em virtude da sanção cominada. Há entendimento contrário, externado por Lênio Luiz Streck 2 , sob o fundamento de que a lei visa exatamente punir a macro-criminalidade, a criminalidade do colarinho branco, organizada etc. Penso que a solução melhor seria uma postura intermediária: os crimes de responsabilidade, em geral, também estão descritos e são punidos pelo direito comum (v. lei 1.079/50, art. 3º). O processo por crime de responsabilidade, aliás, não impede o processo comum. Sendo assim, se o crime de responsabilidade corresponde a uma infração comum punida com reclusão, não existiria nenhum obstáculo para a decretação da interceptação telefônica. Porque respeitada a proporcionalidade. Não é uma infração qualquer que admite tal medida cautelar.

O legislador, com o escopo de dar um conteúdo efetivo ao princípio da proporcionalidade, selecionou os crimes punidos em abstrato com reclusão como o âmbito de incidência da lei 9.296/96. Não é demais recordar que o referido princípio tanto está presente (ou deve estar) no instante da feitura da lei, como no da sua aplicação e execução. Em todo momento a medida restritiva de um direito fundamental deve ter a medida do justo. Consoante a imagem do Poder Legislativo, a interceptação telefônica num crime punido com reclusão seria proporcional à ingerência excepcional na intimidade das comunicações. Como veremos logo abaixo, o critério eleito pode não ser considerado o melhor. Mas é certo que foi establecido esse parâmetro.

Damásio E. de Jesus 3 , com inteira razão, critica o critério legal pela “extensão e limitação”: quanto à primeira, porque literalmente seria cabível interceptação telefônica em qualquer infração punida com reclusão, o que muitas vezes constituirá um exagero; no que concerne à limitação, cabe lembrar que alguns crimes não punidos com reclusão bem que, por natureza, ensejariam a interceptação, como é o caso de ameaça, crimes contra a honra cometidos por telefone etc.

Em relação à doutrina estrangeira sempre houve a preocupação de se salientar o cabimento da interceptação exclusivamente “nos delitos graves”, porque somente eles podem tolerar essa ingerência na intimidade alheia 4 . O mais comum, em termos de direito comparado, é a adoção de um elenco de crimes que comportam a interceptação 5 . Já o critério do “quantum da pena” é criticável, porque resulta exageradamente permissivo 6 . Como bem destacou Antonio Magalhães Gomes Filho 7 , certamente “não pretendeu a Constituição outorgar uma “carta branca” para que o legislador ordinário autorizasse o seu emprego na apuração de “todos os crimes” punidos com reclusão, como faz o art. 2º, inc. III, da Lei 9.296/96”. Urge, destarte, muito cuidado do juiz no momento de aplicar a lei. Por força do princípio da proporcionalidade impõe-se que seja criterioso, cauteloso, pois do contrário irá distanciar-se das diretrizes impostas pelo constituinte 8 .

A forma abrangente seguida pelo legislador, adverte Antonio Scarance Fernandes 9 , é perigosa, podendo dar margem a abusos, sem o resultado positivo de melhoria na colheita de elementos de investigação ou de prova. Não seria o caso de se afirmar que a fórmula legal seja inconstitucional, porém, a aplicação da lei pode sê-lo. Se o juiz não contrabalançar os valores em jogo, é dizer, se autorizar a interceptação em qualquer crime punido com reclusão, pode incorrer numa aplicação inconstitucional da lei, sendo passível sua decisão de questionamento (e alegação de nulidade). Há necessidade, portanto, como bem enfatizou Vicente Greco Filho 10 , “de se ponderar a respeito dos bens jurídicos envolvidos: não se pode sacrificar o bem jurídico da magnitude do sigilo das comunicações telefônicas para a investigação ou instrução de crime em que não estejam envolvidos bens jurídicos de maior valor”.

Seria absurdo, lembra Alfonso Serrano Maíllo 11 , a ingerência na intimidade de uma pessoa por infração penal de escassa transcendência ou escassa entidade”. A proporcionalidade, diz Antonio Pablo Rives Seva 12 , “supõe que exista uma correlação entre a medida, sua duração e sua extensão e as circunstâncias do caso, especialmente a natureza do delito, sua gravidade e sua própria transcendência social. Neste sentido, de acordo com uma interpretação teleológica do sistema...deve-se ter em conta que somente os delitos graves podem dar lugar a uma interceptação telefônica e só pelo tempo indispensável, dentro do âmbito espacial que se considere necessário”.

No direito espanhol, parecido com o nosso, a lei não estabelece um catálogo de delitos que admite a interceptação telefônica, apesar da recomendação do Tribunal Europeu de Direitos Humanos (v. casos Huvig e Kruslin, de 24.04.90). Em virtude disso, tanto a doutrina como a jurisprudência chamam atenção para a necessidade da estrita observância da proporcionalidade. Sara Aragoneses Martinez 13 , por exemplo, em lição muito adequada, mutatis mutandis, para nós, diz: “Como o CPP não estabelece um catálogo dos delitos suscetíveis de investigação por tais meios, pode-se ter em conta o critério da Sentença de 18 de junho de 1992 [Tribunal Supremo], segundo o qual ‘somente os delitos graves podem tolerar essa ingerência’, devendo o juiz proceder de acordo com uma interpretação restritiva, deferindo a medida quando não haja outros meios eficazes para a investigação menos gravosos para os direitos fundamentais”.

* Artigo extraído do livro “Direito à intimidade e interceptação telefônica”, que será publicado em breve pela Editora Revista dos Tribunais.

1 V. “A interceptação de conversações telefônicas e os ilícitos penais”, em Enfoque Jurídico, TRF 1ª Região, n. 01, agosto/96, p. 3.

2 V. “Escuta telefônica e os direitos fundamentais”, em Revista Jurídica, n. 228, outubro de 1996, Ed. Síntese, Porto Alegre, págs. 10/11.

3 V. “Interceptação de comunicações telefônicas” (artigo inédito).

4 V. Enrique RUIZ VADILLO, “Escucha telefônica”(Caso Naseiro), p. 910. V. ainda: Jaime VEGAS TORRES, Presuncion de inocencia, Madri, , p. 393 e nota 377.

5 Isso é exatamente o que ocorre na Suiça, Dinamarca, Suécia etc., consoante Raúl CERVINI, “Anotaciones: ., p. 5 (artigo inédito). Na Itália o sistema é misto: rol de crimes e gravidade. Na Espanha a interceptação telefônica só depende da gravidade da infração, a ser valorada pelo juiz.

6 V. Raúl CERVINI, “Anotaciones”., cit., p. 6.

7 V. Boletim IBCCrim n. 45, p. 14.

8 V. Maria Lucia KARAM, “Interceptação de comunicações”, Enfoque Jurídico n.1, cit., p. 5.

9 V. “A lei de interceptação”, Justiça Penal, n. 4, RT, SP, 1996, p. 57.

10 V. Interceptação telefônica, Saraiva, SP, 1996, p. 15.

11 Cfr. “Valor de las escuchas”, RBCCrim n. 15, p. 15.

12 “La prueba en el processo penal.. Apuntes Jurisprudenciales”, em Actualidad Penal n. 32/4, Madri, p. 556.

13 Derecho Procesal Penal, obra coletiva, Centro de Estudios Ramon Areces, 2ª ed., 1995, p. 379.


Inconstitucionalidade da " Lei Hélio Bicudo "

Fernando Ferrari de Lima*  e  Walter Waltemberg Silva Júnior**

Festejam, ainda agora, todos os compromissados com a reformulação legislativa decorrente da redemocratização do país, recente modificação na redação de dispositivos penais e processuais militares.

Comemoram, ao que dizem, a alteração de competência no âmbito da Justiça Militar estadual, remetendo-se à Justiça Comum os casos que encerram crimes dolosos contra a vida.

Não vemos razão para tamanha euforia.

A questão da competência da justiça Militar estadual está “estritamente estabelecida na Constituição Federal em função da sua característica de Juízo especializado”.1 A criação da Justiça Militar vem autorizada pela Constituição Federal nos termos do art. 125, § 3º, com a competência fixada no § 4º do mesmo artigo, assim elaborado:

“§ 4º, Compete à Justiça Militar estadual processar e julgar os policiais e bombeiros militares nos crimes militares definidos em lei, cabendo ao tribunal competente decidir sobre a perda do posto e da patente dos oficiais e da graduação das praças.”

Esta definição legal do que seja crime militar restou estabelecida no art. 9º do Decreto-Lei nº 1001/69, que com a alteração determinada pela Lei nº 9299/96, passou a vigorar nestes termos:

“Art. 9º ............................

Parágrafo único. Os crimes de que trata esse artigo, quando dolosos contra a vida e cometidos contra civil, serão da competência da Justiça Comum.”

Se é assim, logo se vê que lei federal estabeleceu regra de competência que contraria disposição constitucional, decorrendo daí o reconhecimento da inconstitucionalidade do dispositivo apontado.

Não se argumenta que a lei não poderia alterar o art. 9º do Decreto-lei em comento para excluir da definição legal do que seja crime militar os crimes dolosos contra a vida. O que se viu, ao contrário, foi que o legislador federal, contrariando norma constitucional expressa, manteve os crimes dolosos contra a vida no rol dos crimes militares, nas situações que aponta, alterando apenas a competência para processo e julgamento, agora atribuída à justiça Comum.

Sobre o tema, leciona José Afonso da Silva:

“A lei disporá sobre a organização, o funcionamento e a competência da Justiça Militar. mas a Constituição já determina que a ela compele processar e julgar os crimes militares definidos em lei. Vale dizer, portanto, que a lei nada mais pode fazer, quanto à competência, que repetir e desdobrar esse núcleo de competência já constitucionalmente estabelecido: processar e julgar os crimes militares.”

Conclui-se pela inconstitucionalidade do parágrafo único do art. 9º do Decreto-lei nº 1001/69, com a redação que lhe deu o artigo primeiro da Lei nº 9299/96. Pelas mesmas razões, a inconstitucionalidade apontada atinge também o art. 82 caput e § 2º do Decreto-lei 1002/69. µ

* Promotor de Justiça Militar em Rondônia

** Juiz-Auditor Militar do Estado de Rondônia


Prisão para Averiguações uma Necessidade Indiscutível
LUIZ ALBERTO MORO CAVALCANTE
Juiz-Auditor Substituto da Justiça
Militar do Estado de São Paulo


De há muito se discute sobre a legalidade e legitimidade das prisões de pessoas suspeitas efetuadas pela polícia para averiguações. Em regra a pessoa suspeita é conduzida para uma delegacia de polícia, local onde passa por uma triagem e, ao depois, em não havendo estado de flagrância delitiva ou mandado de prisão contra ela, é liberada. Caso contrário, é autuada e/ou recolhido ao xadrez, conforme a lei.

Para enfocar a questão com clareza é necessário apreciar o que diz a Constituição Federal a respeito da prisão: “ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente, salvo nos casos de transgressão militar ou crime propriamente militar, definidos em lei”. (art. 5º, “LXI”, da CF). Pois bem, o que significa ser preso?... Coloca-se esta questão porque já se ouviu muitas pessoas dizerem que quem efetua a prisão é a autoridade policial e que os policiais militares ou os investigadores de polícia são meros condutores. Portanto, é imprescindível saber-se quando se inicia a prisão, se no momento em que a pessoa é privada de seu direito de ir e vir, ainda que no local da abordagem, ou quando ela é encarcerada por determinação da autoridade policial.

A própria Constituição Federal permite, numa interpretação sistemática, obter-se, sem sombra de dúvidas, a resposta a tal questão. Diz no seu art. 5º, “LXIII”: “o preso será informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer calado, sendo-lhe assegurado a assistência da família e de advogado”. Ora, sabe-se que o auto de prisão em flagrante delito só tem validade se o inciso “LXIII” for observado antes de sua lavratura. Pois de nada adianta dar a pessoa o direito de ficar calada depois do seu interrogatório. Haveria de se dar antes. Da mesma forma a assistência da família e de advogado. Daí conclui-se que a palavra preso refere-se àquele que está impedido de mover-se livremente, isto é, aquele que está privado do seu direito de locomoção. Mas tem mais, diz o inciso “LXIII”, do art. 5º, da C.F.: “ninguém será levado à prisão ou nela mantido, quando a lei admitir a liberdade provisória, com ou sem fiança”. Donde se conclui que o fato da autoridade policial lavrar o auto, expedir a nota de culpa e determinar o encarceramento da pessoa não é ato inicial de efetuar a prisão, mas apenas formalidades legais. O ato de prisão foi praticado pelo condutor, que pode ser de qualquer pessoa do povo ou as autoridades policiais e seus agentes (art. 301 do CPP).

Tem-se, pois, que a expressão preso foi utilizada pela Constituição no seu sentido mais amplo, qual seja: “Ninguém será privado do seu direito de ir e vir, de permanecer, de estar... mesmo que temporariamente - senão em flagrante delito ou...”. Assim sendo, pergunta-se: E o suspeito que foi conduzido contra sua vontade pelo policial militar até a delegacia de polícia, e lá, após nada se constatar contra ele, foi liberado. Será que ele ficou preso durante o tempo necessário para a averiguação? É evidente que sim, pois embora nada tivesse sido formalizado legalmente, de fato ele ficou cerceado do seu direito de locomoção - foi contra a sua vontade e na delegacia permaneceu contra a sua vontade. Esta é a tão falada prisão para averiguações.

Dir-se-á: “Mas, então, a prisão para averiguação é vedada pela Constituição Brasileira e como tal, a polícia não pode efetuá-la”. Sim. Mas... para que serve a polícia? Veja-se o exemplo: “Moradores de um bairro residencial, preocupados com os constantes crimes contra o patrimônio ali praticados, telefonam para a polícia porque viram dois indivíduos desconhecidos perambulando pelo bairro à noite. A polícia comparece no local e os aborda, entretanto, nada constata que possa justificar uma prisão em flagrante; eles não têm documentos - ou até têm, isto acaba sendo indiferente pois é tão fácil obter-se um documento falso - e contam uma história que não justifica a estada deles ali”. Pois bem, a polícia não tem conhecimento de mandado de prisão contra eles.

E daí? O que fazer? Talvez houvesse quem sugerisse que a polícia devesse acordar todos no bairro, fazer uma reunião e dizer que a Constituição Brasileira não permite a prisão para averiguações... Ora! É esta a polícia que a sociedade quer? É esta a polícia que a sociedade necessita? E se a polícia vai embora deixando os dois suspeitos no bairro? Os moradores vão entender? É evidente que não; e se houver um furto naquela noite no bairro, certamente vão pensar que a polícia tem participação. É preciso encarar o problema com seriedade e buscar soluções concretas e plausíveis que objetivem atender o bem comum.

Se a polícia não dispõe de recursos para esclarecer a situação de fundada suspeita no local da abordagem não seria legítimo que o direito lhe subtraísse tal possibilidade (o ideal seria que cada policial tivesse um equipamento eficiente que pudesse identificar a pessoa em frações de minuto através das impressões digitais. A pessoa colocaria o dedo no aparelho e a polícia saberia se era caso de prisão). Aqui a expressão legítimo está empregada no sentido democrático - que se adapta aos interesses do povo. Sabe-se que a legitimidade está fundada no direito, na razão ou na Justiça. Ora! Não pode a polícia trabalhar com as mãos atadas e, em consequência, deixar de atender os interesses e os anseios da comunidade, causando, destarte, prejuízo ao bem comum e a paz social.

Por outro lado, existe, em muitas pessoas, o temor da Constituição Federal admitir a prisão para averiguações. Argumentam que se com a vedação constitucional a polícia efetua numerosas prisões, com a permissão, então, as pessoas ficariam sujeitas aos arbítrios das autoridades policiais e seus agentes, que com a justificativa meramente subjetiva da “fundada suspeita” tirariam a tranquilidade de todos - a pessoa andaria na rua com medo de ser presa e se um policial olhasse para ela ficaria preocupada e com “cara de suspeita”.

Ocorre, porém, que a expressão “fundada suspeita” não fica ao livre arbítrio da polícia. É, pois, necessário que esteja apoiada em boas razões, sendo, por isto, proibidas as discriminações de qualquer natureza (ninguém é suspeito porque é negro, pobre, feio, carrancudo, veste-se mal, bebe, etc). Às vezes uma pessoa bem vestida e de boa aparência transmite boas razões de que é um indivíduo que inspira desconfiança - suspeito.

As ações de alguns poucos policiais não pode jogar por terra todo o trabalho da polícia. É necessário extirpar os maus policiais, e aprimorar os demais. E nesta empreitada sabe-se que a polícia não mede esforços.

O tirocínio policial para a indentificação de uma situação de fundada suspeita há que ser regido por critérios técnicos que ilidam as razões de natureza discriminatórias ou meramente pessoais, pois, é inconcebível que entre dezenas de policiais devidamente preparados, apenas um destes veja num indivíduo uma atitude suspeita. Ora, todos têm a mesma visão, as mesmas informações e os mesmos conhecimentos profissionais, então, porque para apenas um deles a pessoa é vista como suspeita? Isto tira a tranqülidade das pessoas de bem. O ideal seria que todo policial quando questionado - em juízo, no quartel ou na delegacia de polícia - a respeito dos motivos que o levaram a prender alguém para averiguações, demonstrasse para a autoridade que agiu com critérios técnicos de tal sorte que qualquer outro policial de preparo mediano - não precisa ter o tirocínio policial tão aguçado, pois, sabe-se que tem policial que “vê tudo”, como tem o que não vê e também não quer ver - no seu lugar faria a mesma coisa.

O policial deve ter em mente que a prova que ele obtiver numa abordagem motivada por razões discriminatórias, poderá ter a sua validade questionada em juízo, pois o art. 5º, inciso “LVI”, da C.F. diz: “são inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos”. E o inciso “XLI”, do art. 5º, da C.F. diz: “a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais”.

Da mesma forma, o policial deve estar consciente de que o suspeito só poderá ficar cerceado no seu direito de locomoção pelo tempo estritamente necessário para a triagem. Assim sendo, constitui abuso ficar dando voltas com a viatura ao invés de ir direto para a delegacia. E, uma vez nesta, é mister tratar a ocorrência com prioridade - não se pode trancafiar a pessoa numa cela e deixar para depois. Como ilustração destaca-se “A indevida retenção dos ofendidos por mais de doze horas, a pretexto “prestar esclarecimentos”, cabalmente provada nos autos, enquadra-se na figura típica do art. 3º, “a”, da Lei 4.898, de 9/12/65, que dispõe: “Constitui abuso de autoridade qualquer atentado: a)- à liberdade de locomoção” (TACRIM - SP - Ap. Crim. Rel. Juiz Albano Nogueira - JUTACRIM 71/387).

Em a polícia agindo com critérios estritamente técnicos, sepultando de vez as razões discriminatórias ou meramente pessoais, não há porque temer uma mudança na Constituição Federal acrescentando ao inciso “LXI”, do art. 5º: “ninguém será preso... salvo nos casos de transgressão militar, crime propriamente militar, ou fundada suspeita, definidos em lei”. E a lei estabeleceria rígidos critérios objetivando o bem comum, sem tirar, obviamente, a tranqüilidade das pessoas no dia-a-dia. Em caso de abuso a Justiça está aí para processar e punir.

Enquanto isso não acontecer é evidente que a polícia vai continuar a prender pessoas suspeitas para averigüações, pois tem o dever de agir de acordo com o interesse social, zelando pela segurança social e buscando, destarte, cumprir asua missão para que os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil sejam atingidos e mantidos, principalmente o do inciso “IV”, do art. 3º da C.F., que diz: “promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor,idade e quaisquer outras formas de discriminação”.

A ação da polícia, neste mister, vai estar amparada em decisões já firmadas pela jurisprudência no sentido de que serão legítimas as prisões para averigüações, quando feitas em atendimento ao interesse social e desprovidas de abusos - “Sempre que haja motivo razoável para a detenção indivíduos em situação suspeita ou irregular não há como divisar-se nessa conduta, que contém dentro do chamado “poder de polícia”, qualquer abuso de autoridade” (TACRIM - SP - Ap. Crim. - Relator Juiz Valentim Silva - JUTACRIM 44/408). Em que pese haver decisões em sentido contrário como esta: “Sempre que se tolhe a liberdade de locomoção de alguém, sem que este seja preso em flagrante delito ou sem mandado regular de autoridade competente, fica configurado o delito de abuso de autoridade”. (TACRIM - SP - Ap. Crim. - Relator Juiz Nelson Schievari - JUTACRIM 71/301).


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O Código Penal Militar, esse Grande Desconhecido
JORGE ALBERTO ROMEIRO
Ministro Aposentado do Superior Tribunal Militar, Professor, aposentado, da Faculdade de Direito da UFRG e Membro Titular da Academia Brasileira de Letras Jurídicas

1. O saudoso Professor LUIZ FREDERICO SÁUERBRONN CÁRPENTER1 , meu professor de Direito Judiciário Penal na antiga Faculdade de Direito da Universidade do Brasil, definiu, com rara felicidade, os crimes propriamente Militares: “Os crimes propriamente militares não são delitos militares, são contravenções à disciplina militar.”

2. E por serem delitos de criação artificial política, só dizendo respeito à disciplina militar, infrações específicas, estatutárias, puras, funcionais ou de serviço, que diversamente dos crimes comuns, não ofendem os direitos naturais do homem, não são um mal em si (mala in se, malum quia malum), mas um mal porque proibido (malum quia proibita, malum quia vetitum), não lesam um interesse geral da humanidade, não sendo, assim, passíveis de extradição, repelidos como crimina ius gentium pelo Direito Internacional Público, nem, por tudo isso, considerados, para o efeito de reincidência, com os crimes comuns (art. 64, II, do Código Penal comum), deles não se têm ocupado os nossos penalistas, mais voltados, hoje em dia, para o estudo da Criminologia, a ponto de serem relegados os crimes em questão até ao olvido dos legisladores pátrios, com graves conseqüências, como se verá em seguida.

3. Mirando a descongestionar nosso sistema penitenciário, que assola a execução penal, a jurisprudência de nossa justiça comum, dando realce ao princípio de oportunidade da ação penal, vem enfatizando o princípio da insignificância, dele derivado, como excludente da tipicidade penal.

4. Consiste esse princípio na proposição política-criminal da necessidade de descriminação de condutas, que embora formalmente típicas, não atingem de forma socialmente relevante, os bens jurídicos protegidos pelo direito penal.

5. Expressa o princípio, no campo do direito penal, o brocardo, muito difundido, do direito romano De minimis non curat praetor.

6. O tipo penal pressupõe um perigo social no comportamento do autor do crime. Quando inexista este perigo, não valeria o referido tipo. É, entre outras, a teoria da adequação social do tipo (Socialadaquänz), formulada por WEISEL, transformada em regra de hermenêutica.

7. Em recente livro, intitulado “O Princípio da Insignificância como Excludente de Tipicidade no Direito Penal”, editado pela Livraria Saraiva em 1994, CARLOS VICO MAÑAS, Procurador do Estado de São Paulo e Professor de Direito Penal, disserta sobre o referido princípio, procurando justificá-lo doutrinariamente, focalizando-o na legislação penal comparada e transcrevendo mais de uma dezena de ementas de acórdãos de tribunais paulistas e uma da 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal sobre sua aplicação em crimes de pequena monta, como furtos e lesões corporais leves. Não faz, entretanto, qualquer alusão ao Código Penal Militar, pioneiro em nosso país, desde 1969, em tratar do moderno festejado princípio em texto legal.

8. Com essa sua omissão faz crer o autor ilustre que, no Brasil, só o direito costumeiro, que os juristas germânicos denominam ungeschriebenes Recht, direito não escrito, tem cuidado do assunto, através da jurisprudência (usus fori).

É o desconhecimento total do Código Penal Militar, que com este artigo pretendemos demonstrar.

9. Nosso estatuto penal castrense contém vários artigos sobre o princípio e sua aplicação quando, sendo primário o agente, se trate de coisas de pequeno valor, nos crimes de furto (art. 240, § 1º), apropriação indébita (art. 250), receptação (art. 254, parágrafo único) e outros mais, como lesões levíssimas (art. 209, §6º), etc. O Código PenalExtorsão mediante seqüestro e na forma qualificada, no art. 244, caput e seus § § 1º, 2º e 3º; o de estupro, no art. 232; o de atentado violento ao pudor, no art. 233; o de epidemia com resultado morte, no art. 292, § 1º; o de envenenamento de água potável ou de substância alimentícia ou medicinal, qualificado pela morte, no art. 293, § 2º; e o de genocídio, no art. 208 e seu parágrafo único. São os chamados crimes impropriamente militares, que se diferenciam dos crimes propriamente militares (deserção, insubmissão, motim, revolta, cobardia, etc.), porque, ao contrário destes, figuram também no Código Penal e leis penais comuns.

Contudo, o art. 1º da Lei nº 8.072, de 1990, como vimos, só definiu como crimes hediondos os tipificados no Código Penal comum e na Lei nº 2.889, de 1956, por ele aludidos, e não os que indicamos, tipificados, por forma igual, no Código Penal Militar, que não podem, por esse motivo, ser considerados crimes hediondos, com suas gravosas conseqüências.Militar confere, expressamente, ao poder discricionário do juiz a faculdade, entre outras alternativas, de “considerar a infração como disciplinar” e absolver o agente, remetendo o processo para a autoridade administrativa militar, que procederá como lhe parecer melhor, condenando ou absolvendo o agente, por falta disciplinar. Estão fora das atribuições do juiz militar as infrações dos regulamentos disciplinares (art. 20 do CPM).

10. Mas não somente nossos penalistas afeitos ao direito penal comum desconhecem o Código Penal Militar. A própria justiça militar, pelo menos até nosso ingresso no Superior Tribunal Militar, em 1979, identificava o princípio da insignificância, expresso no Código Penal Militar, com o perdão judicial, cujo nomem iuris ele silenciou, apesar de tratar-se de institutos jurídicos totalmente diferentes, como esclarecemos ali.

11. No perdão judicial a não aplicação da pena não resulta de uma sentença absolutória, mas extintiva da punibilidade. O princípio da insignificância exclui a tipicidade penal, descrimina. No perdão judicial o crime permanece intacto, deixando apenas de ser punido. A sentença concessiva do perdão judicial deve dizer que o perdoado é considerado culpado, mas isento de pena (Der Angeklagte wird für schuldig, aberfür straffrei erklärt)2 , não tendo especialmente lugar nenhuma anotação no registro de seus antecedentes penais (insbesondere findet Keine Registereintragung statt)3 .

12. O fundamento do perdão judicial não é o mesmo do princípio da insignificância, - o bagatellsachen do direito penal alemão - são vários, como a existência de fatos delituosos sumamente leves, para os quais a própria pena mínima, prevista pela lei, é demasiada4 , ou cuja punição desagrada a consciência popular5 .

13. Comportam o perdão judicial, no direito penal comum os crimes de adultério “se havia cessado a vida em comum dos cônjuges” (art. 240, § 4º, do CP); de injúria “quando o ofendido, de forma reprovável, provocou diretamente a injúria” e “no caso de retorsão imediata, que consista em outra injúria (art. 140, § 1º, I e II); de lesão e homicídio culposos “se as conseqüências da infração atingiram o próprio agente de forma tão grave que a sanção penal se torne desnecessária (arts. 121, § 5º, e 129, §8º, do CP, acrescidos pela Lei nº 6.416, de 24/05/77); e outros mais.

No Código Penal Militar só o crime de receptação culposa (art. 255, parágrafo único) admite o perdão judicial, sem qualquer alusão ao nomen iuris do instituto. O juiz não considera a infração como disciplinar, absolvendo o receptado, deixa apenas, “de aplica a pena”, pela extinção da punibilidade do crime.

14. Por não diferenciar o perdão judicial do princípio da insignificância, acreditamos haver o legislador militar deixado de registrar na Exposição de Motivos do CPM, o pioneirismo deste em focalizar em texto legal o importante princípio descriminante no direito pátrio.

15. A propósito, não seria demais expormos, nesta oportunidade, nossa inteira repulsa à recente e lamentável jurisprudência do STM no sentido de negar aplicação ao princípio da insignificância no caso de lesões culposas levíssimas, com o equívoco fundamento doutrinário alienígena de que “o elemento decisivo do fato culposo reside no desvalor da ação e não no resultado”6 . Tão exótica e esdrúxula doutrina, nada tem a ver com aplicação princípio da insignificância no Brasil.

Como se lê na Exposição de Motivos do CPM (nº 17), “entre os crimes de lesão corporal, incluiu-se o de lesão levíssima, a qual segundo o ensino da vivência militar, pode ser desclassificada pelo juiz para infração disciplinar, poupando-se, em tal caso, o pesado encargo de um processo penal para fato de tão pequena monta.”

Não distingue o Código entre lesões corporais dolosas e culposas levíssimas para efeito de aplicação do focado princípio, sendo que a malsinada jurisprudência desvirtua até a principal finalidade do princípio, que é o de esvaziar as cadeias, ou, como acentua a Exposição de Motivos evitar “o pesado encargo de um processo penal para fato de tão pequena monta.”

Demais a impugnada jurisprudência beneficia injustamente os agentes de lesões dolosas em detrimento dos de lesões culposas, bem menos graves, quebrando a gloriosa tradição de liberalismo de nossa justiça penal militar.

Nem se argumente que o nosso Estatuto Penal Castrense encampou em sua sistemática, (nunca cogitada, aliás, pelo açodamento com que foi elaborado e publicado o Código), tão repulsiva doutrina alienígena, como aconteceu com a adotada para o crime continuado, localizando o § que trata de lesões levíssimas no art. 209, que só cuida de lesões dolosas (argumento pro sujecta material). Dito dispositivo focaliza também lesões culposas, como se verifica de seu § 3º. Nada existe em nosso ius positum que justifique a adoção de tão esdrúxula e enigmática doutrina na conceituação do princípio da insignificância. Nem as alienígenas teorias normativas da culpabilidade estruturaram nosso Código de 1969, sendo a tradicional teoria psicológica da culpabilidade que o rege.

A recente jurisprudência do SM coloca ainda os acusados de crimes culposos na justiça militar em situação de inferioridade aos da justiça comum, estabelecendo distinções inexistente e proibidas pelo nosso direito penal para a aplicação do princípio da insignificância, como se verifica das ementas dos acórdãos abaixo transcritos, sendo o primeiro deles de nossa mais alta Corte de Justiça:

A) Lesão corporal - Acidente de trânsito - Princípio da insignificância - Crime não configurado: Se a lesão corporal (pequena equimose), decorrente de acidente de trânsito, é de absoluta insignificância, como resulta dos elementos dos autos - e outra prova não seria possível fazer-se tempos depois, - há impedir-se que se instaure ação penal que a nada chegaria, inutilmente sobrecarregando as Varas Criminais, geralmente tão oneradas (STF - RHC 66.869-1 - 2ª T - j. 6/12/98 - Rel. Ministro ALDIR PASSARINHO);

B) Lesões leves - Atropelamento - Laudo de exame de corpo delito perfeito - Atipicidade: Se a lesão foi considerada de pequena monta, afastada a tipicidade, há de se aplicar o princípio da insignificância (TACrim SP - Rel. RICARDO ANDREUCCI - AC JTACRIM. 75/307);

C) Lesão corporal culposa - Atropelamento - Ligeira Hiperemia - Fato atípico: As lesões eritematosas, consistentes em simples rubores de pele por não comprometerem anatômica, fisiológica ou mentalmente o corpo humano. A regra de minibus non curat pretor orienta também o legislador, que não eleva à categoria de crime a conduta sem nenhuma expressão, de resultado insignificante (TACrimSP) - Ac - Rel. DUARTE BUSANA - JTACRIM. 74/376).

Como, aliás, bem arremata CARLOS VICO MAÑAS a citação da jurisprudência que arrola em seu citado livro: “Vale lembrar, no entanto, que o princípio é passível de reconhecimento em qualquer espécie de crime: material, formal ou de mera atividade, comissivo ou omissivo, doloso ou CULPOSO, respeitando-se sempre o critério normativo da nocividade social.”

Não seria demais acentuar que, com a ampla aplicação do princípio da insignificância pela jurisprudência de nossos tribunais civis, o agente, quando civil ou co-autor de crime militar de lesões levíssimas, deve ser simplesmente absolvido, pois não se tratando de militar, não há como o juiz considerar primeiramente a infração como disciplinar.

16. O perdão judicial, que, como acima esclarecido, não se confunde com o princípio da insignificância e que o CP comum admite para a lesão culposa na hipótese de as conseqüências da infração atingirem o próprio agente de forma tão grave que a sanção penal se torne desnecessária (art. 129, § 8º), não tem aplicação a igual lesão do CPM, apesar de crime acidental ou impropriamente militar, conforme, por maioria de votos, decidiu, com acerto, o acórdão do STM de 13/12/95, proferido na Apel. nº 47.491-9-AM, do qual foram, respectivamente, relator e revisor, os ministros Dr. PAULO CASAR CATALDO e Gen Ex LUIZ GUILHERME DE FREITAS COUTINHO (DJU de 11/3/96, pag. 6.808).

Um único caso de perdão judicial, como já dito acima, acolhe o nosso Estatuto Penal Castrense, o previsto pelo parágrafo único do art. 225, para a receptação culposa.

17. Outra injusta omissão que se faz ao Código Penal Militar é com referência às Medidas de Segurança.

Foi o nosso Código Penal Militar que, num avanço doutrinário incalculável, revolucionou nosso direito positivo nessa matéria, abolindo o critério dualista, que substituiu pelo monista ou utilitarista, o chamado sistema vicariante, segundo o qual não existe diferença essencial entre pena e medida de segurança detentiva, extinguindo o desacreditado sistema, muito em moda na época, dos dois trilhos ou duplo binário (doppio binario, dual track, Zweispurigheit), pelo qual eram impostas, cumulativa e sucessivamente, penas e medidas de segurança detentivas a criminosos imputáveis e semi-imputáveis.

Este fato, historicamente relevante, não está registrado em lugar nenhum. A exposição de Motivos da Nova Parte Geral do Código Penal comum (Lei nº 7.209, de 11/7/84), que, quatorze anos depois, reestruturou, no direito penal comum, as medidas de segurança detentivas nos moldes do Código Penal Militar, nem o refere, dando a entender que, no Brasil, nada a respeito do que fizera já existia antes (item 87).

A Exposição de Motivos do próprio Código Penal Militar, por incrível que pareça, não refere sequer à reformulação doutrinariamente avançada que ele empreendera no instituto das medidas de segurança.

Aqui, como já o fizemos antes em nosso recente “Curso de Direito Penal Militar (Parte Geral)”, deixamos o registro enfático do referido importante empreendimento histórico do Código Penal Militar, esse grande desconhecido, com relação às medidas de segurança, no direito penal brasileiro.

18. O Legislador da Lei nº 8.069, de 13/07/90, que “dispõe sobre o ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE, e dá outras providências”, simplesmente ignorou a existência no texto do Código Penal Militar dos crimes impropriamente militares de homicídio doloso (art. 205), lesões corporais (art. 209) e maus tratos (art. 313), que podem ser praticados, em lugar sujeito à administração militar, contra menores de quatorze anos, exacerbando de um terço somente as penas desses crimes quando previstos pelo Decreto-Lei nº 2.849, de 7/12/40, que é o Código Penal comum, cujos artigos 121, 129 e 136, expressamente, alterou para o dito fim, em seu art. 263, atentando evidentemente contra o princípio constitucional da isonomia (CF, art. 5º, caput).

19. Onde a desconsideração do Código Penal Militar pelos nossos legisladores penais atingiu, entretanto, o seu clímax, foi quando, na forma do inciso XLIII do art. 5º da Constituição Federal de 1988, a Lei nº 8.072, de 25/6/90, definiu os crimes hediondos que, com os da prática da tortura, do tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins e do terrorismo, passaram a ser inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia.

Eis como a mencionada Lei define os crimes hediondos em seu art. 1º: - “São considerados hediondos os crimes de latrocínio (art. 157, § 3º, in fine), extorsão qualificada pela morte (art. 158, § 2º), extorsão mediante seqüestro e na forma qualificada (art. 159, caput e seus § § 1º, 2º e 3º), estupro (art. 213, caput e sua combinação com o art. 223, caput e parágrafo único), atentado violento ao pudor (art. 214 e sua combinação com o art. 223, caput e parágrafo único), epidemia com resultado morte (art. 267, § 1º), envenenamento de água potável ou de substância alimentícia ou medicinal, qualificada pela morte (art. 270, combinado com o art. 285), todos do Código Penal (Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940) e de genocídio (arts. 1º, 2º e 3º da Lei 2.889, de 1º de outubro de 1956) tentados e consumados.”

Atente-se que o dispositivo não se limitou apenas a nomear os crimes que define como hediondos, mas indicou os dispositivos legais em que estão tipificados, acentuando serem “todos do Código Penal (Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940” e o referente ao genocídio “da Lei nº 2.889, de 1º de outubro de 1956”.

Ora, todos os crimes referidos no artigo transcrito como só tipificados no Código Penal comum e na Lei nº 2.889, de 1/10/56, também o são, por forma igual, no Código Penal Militar: O crime de latrocínio, no art. 242, § 3º; o de extorsão, qualificada pela morte, no art. 243, § 2º; o de extorsão mediante seqüestro e na forma qualificada, no art. 244, caput e seus § § 1º, 2º e 3º; o de estupro, no art. 232; o de atentado violento ao pudor, no art. 233; o de epidemia com resultado morte, no art. 292, § 1º; o de envenenamento de água potável ou de substância alimentícia ou medicinal, qualificado pela morte, no art. 293, § 2º; e o de genocídio, no art. 208 e seu parágrafo único. São os chamados crimes impropriamente militares, que se diferenciam dos crimes propriamente militares (deserção, insubmissão, motim, revolta, cobardia, etc.), porque, ao contrário destes, figuram também no Código Penal e leis penais comuns.

Contudo, o art. 1º da Lei nº 8.072, de 1990, como vimos, só definiu como crimes hediondos os tipificados no Código Penal comum e na Lei nº 2.889, de 1956, por ele aludidos, e não os que indicamos, tipificados, por forma igual, no Código Penal Militar, que não podem, por esse motivo, ser considerados crimes hediondos, com suas gravosas conseqüências.


20. Em direito penal só vale o que está escrito na lei (voluntas legis), cuja interpretação há de ser sempre restrita, literal. Nem, para configurar como hediondos os crimes militares por nós indicados, é possível recorrer à analogia com os crimes comuns referidos no art. 1º da Lei nº 8.072, de 1990. Ainda em direito penal, só é consentida a analogia em benefício do réu (in bonam partem) e não contra ele (in malam partem).

Assim e indiscutivelmente, a definição legal dos crimes hediondos infringe o princípio da igualdade de todos, civis e militares, perante a lei, inscrito no caput do art. 5º da nossa Lex legum, ensejando situações absurdas, como bem realça o seguinte exemplo: Se um militar comete um crime de estupro dentro do quartel (crime militar), seu crime não será hediondo, pois só o será se praticado em local não sujeito a administração militar e desde que a ofendida não seja sua colega de farda (crime comum).

21. Por incrível que pareça, a Lei nº 8.930, de 6/9/94, que deu nova redação ao art. 1º da Lei nº 8.072, de 1990, para acrescentar e excluir alguns crimes hediondos, não incluiu nele nenhum crime militar, acentuando, mais uma vez, serem os ditos crimes “todos tipificados no Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 - Código Penal, consumados ou tentados” (art. 1º).

22. Encerrando este artigo, não seria demais argüir a inconstitucionalidade das Leis nº 8.069, de 1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente) e 8.072, de 1990 (sobre os crimes hediondos, nos termos do art. 5º, inciso XLIII, da Constituição Federal), por atentarem flagrantemente contra o mandamento constitucional da igualdade de todos, civis e militares, perante a lei (CF, caput, do art. 5º).

23. Que os nossos penalistas e legisladores não continuem a ignorar o Código Penal Militar, a fim de evitar as injustiças e inconstitucionalidades apontadas neste artigo.

NOTAS BIBLIOGRÁFICAS

1.O Velho Direito Penal Clássico (Tese de concurso). Rio 1914, págs. 59/60

2.EDUARD KERN, Strafverfahrensrecht, ein Studienbuch, München und Berlin, 1960, § 49, IV, seite 185.

3.REINHART MAURACH, Deutsches strafrecht, ein Lehbuch, allgemeiner Teil, 4 vollig neuarbeitete Auflage, Karlruhe, 1971, seite 678, ADOLF SCHÖNKE & HORT SCHRODER, Strafgesetzbuch, Kommentar, München, 1978, seite 115; und PAUL BOCKELMANN, Strafrecht allgemeiner Teil. 2. Auflage Münche und Berlin, 1975, § 30, seite 256.

4.ANTÔNIO JOSÉ DA COSTA E SILVA, Código Penal Comentado, São Paulo, vol. 2, pag. 165

5.MÁRIO DUNI, Il perdono giudiziale, Milano, 1957, pag. 18.

6.Acórdão unânime na Apel. nº 47.316-5-PR, proferido em 10/11/94 (DJU de 20/1/95, pag. 225).

Vejam-se, no mesmo sentido, Apel. nº 47.522-2-RS

unânime, de 19/3/96 com seguinte emenda:

LESÃO CULPOSA. PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA QUE NÃO SE APLICA: Não há como se pautar in caso, pelo princípio da insignificância, eis que, doutrinariamente, nos crimes culposos o que se avalia é a conduta anterior do agente, e não o resultado (DJU de 6/5/96, pág. 14.566) e Apel. nº 47.656-3-BA, unânime, de 2/4/96, com a seguinte ementa: LESÃO CORPORAL CULPOSA (CPM - art. 210): O princípio da insignificância não se aplica aos crimes culposos, posto que o elemento decisivo da ilicitude do fato culposo reside no desvalor da ação e não no resultado (WELSEL). Precedentes no Tribunal. Improvidos os recursos. Decisão unânime (DJU de 6/5/96, pág. 14.565).


Sursis na Justiça Militar
GERALDINE PINTO VIDAL DE CASTRO
Promotora da Justiça Militar Federal


Ainda que a suspensão condicional da pena, no Direito Penal Militar, em decorrência do seu caráter de especialidade, tenha merecido tratamento diverso do Direito Penal Comum, a aplicação de suas normas há de ser conduzida por uma interpretação sistemática e teleológica, tendo como ponto de partida, sempre, as normas-garantia preceituadas na Constituição Federal.

Tendo como um dos requisitos objetivos para a concessão do sursis a imposição de pena privativa de liberdade não superior a 02 (dois) anos, o Código Penal Militar prevê, no caput do seu art. 84, que sua execução pode ser suspensa pelo período de dois até seis anos, enquanto que o Código Penal Comum preconiza que tal suspensão pode se dar pelo período de dois a quatro anos, nos termos do disposto no caput do art. 77.

Vê-se, pois, que o máximo da suspensão condicional da pena para o Direito Penal Castrense teve o mesmo parâmetro usado nos casos do sursis etário, previsto tão somente no Direito Penal Comum, naqueles casos em que o condenado é maior de 70 (setenta) anos e sua pena não supera a quatro anos.

Inobstante a reincidência em crime culposo não seja óbice ao sursis para a Justiça Comum, o mesmo não acontece no âmbito da Justiça Militar, já que, nesta, o impedimento se faz presente pela reincidência tanto em crimes dolosos quanto culposos.

Inaplicável, também, a observância prévia quanto à eventual substituição da pena privativa de liberdade pela restritiva de direito, porquanto inexistente esta no Código Penal Militar, ainda que com ela guardem correlação, pela natureza jurídica, algumas de suas penas acessórias, como a suspensão do pátrio poder, tutela ou curatela e a inabilitação para o exercício de função pública.

Evidencia-se, ainda, que o sursis especial, que se apresenta, quando da reparação do dano pelo condenado, como substituição da prestação de serviços à comunidade e da limitação de fim de semana pelas condições elencadas no § 2º do art. 78 do CP, agora aplicadas cumulativamente, tendo em vista a redação dada pela Lei nº 9.268 de 01.04.96, assim não foi previsto na Legislação Castrense, posto que esta alude, apenas, à possibilidade de cumulação, e não substituição, das condições previstas nos incisos do § 2º do art. 608 com as elencadas nas alíneas do art. 626, ambos, do Código de Processo Penal Militar; sem, inclusive, ressaltar a condicionante de reparação de danos.

Tendo a Constituição Federal de 1988 declarado, no art. 5º, LVII, o que vem a ser considerado o “status” de condenado, impende serem ressaltados os efeitos que esta situação acarreta na aplicação das penas.

Para que se perfaça a situação de condenado, necessário se faz o trânsito em julgado da sentença condenatória, e não somente a sua prolação, já que, se fosse o réu assim considerado antes do término do processo, estariam a ficar comprometidos os princípios constitucionais do contraditório e da ampla defesa.

Em decorrência desse fato, constata-se a incompatibilidade na aplicação do art. 533 c/c o art. 606 do Código de Processo Penal Militar com o disposto no art. 5º, LVII, da Carta Magna.

Senão vejamos.

É que a previsão ali expressa para os efeitos do recebimento da apelação de sentença condenatória indica ser apenas devolutivo o efeito do recurso quando concedido o sursis; possibilitando, por via de conseqüência, a realização e efetivação da audiência admonitória antes do trânsito em julgado da sentença.

Ocorre que, em se considerando essa permissibilidade legal, vai se estar desconsiderando o status constitucional de condenado ao se aplicar, antes de findo o processo, a suspensão condicional da pena, que é, de fato, a suspensão da condição da execução da pena, e que acarreta ao sentenciado medidas efetivamente sancionatórias.

Ainda que o Código de Processo Penal Comum, como fonte subsidiária que é do Processo Militar, não condicione, em seu art. 698, a audiência de advertência à sentença trânsita em julgado, sua interpretação deve ser conjugada com a disposição constante no art. 160 da Lei de Execução Penal que, expressamente, condiciona o momento do trânsito em julgado da sentença à realização da audiência admonitória.

Concepção diversa desse fato implica, inclusive, constrangimento ilegal, sanável por via do habeas corpus, porquanto a produção dos efeitos do sursis revestem-se na aceitação do status de condenado, desde que implementada a condição para ser considerado como tal. Donde a conclusão de ser ineficaz a prática de qualquer ato processual em desconsonância com os princípios constitucionais de garantia, como conseqüência advinda da própria Constituição.

A despeito da inexistência de previsão legal quanto à manifestação do Ministério Público para a concessão do sursis, obrigatória é sua intervenção como Custos Legis no curso da execução da pena e no cumprimento do sursis, a ensejar por fim a declaração da extinção da pena privativa de liberdade, nos termos do disposto no art. 67 da Lei de Execução Penal.


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O Reconhecimento pela Justiça Militar da Infração disciplinar

RONALDO JOÃO ROTH
Juiz-Auditor Substituto da Justiça Militar do Estado de São Paulo, Professor de Direito
Constitucional Aplicado, no Curso de Oficiais (CAO), da Polícia Militar do Estadode São Paulo.

1) - Dos momentos de sua ocorrência

A decisão judicial sobre o reconhecimento de infração disciplinar, na Justiça Castrense, pode ocorrer em dois momentos, um excluindo o outro.

Primeiro quando o procedimento inquisitorial de Polícia Judiciária Militar, seja o Inquérito Policial Militar ou o Auto de Prisão em Flagrante, chega ao Poder Judiciário Especializado, provocando a sua apreciação.

Neste momento, o Ministério Público por seu representante, após estudar os autos pode requerer que o caso apurado pela Polícia Militar, não seja merecedor do oferecimento da denúncia, mas dada a constatação da materialidade do fato, sua autoria, comprovando integralmente a existência do ocorrido e, não havendo qualquer causa de excludente de ilicitude, seja o caso de desclassificação pelo Juiz-Auditor, reconhecendo que o fato é de natureza disciplinar.

Esse procedimento exigirá do Magistrado criterioso exame do que foi apurado na Polícia Militar para, só depois, apreciar a manifestação ministerial, podendo, se houver concordância, o juiz reconhecer a desclassificação requerida, por meio de decisão judicial.

Note-se que o reconhecimento da infração disciplinar ocorreu, sem que houvesse necessidade da instauração da ação penal, pondo-se fim à discussão da questão.

O segundo momento ocorre, quando já existe a ação penal, portanto, depois da existência da denúncia oferecida pelo digno representante do “Parquet”, com base no Inquérito Policial Militar (IPM), e após o encerramento da instrução criminal, das diligências processuais requeridas pelas Partes, das alegações finais, ocasião em que se resolve o mérito do processo com o julgamento.

Nesta hipótese, a questão processual é exaustivamente discutida, sob o crivo do contraditório e da ampla defesa, pelas Partes - Promotor de Justiça e Advogado de Defesa - perante o Conselho de Justiça. O Conselho é formado pelo escabinato de juízes, sendo um juiz togado, denominado Juiz-Auditor, e mais quatro juízes militares, todos oficiais da Polícia Militar. O colegiado é presidido por um oficial superior.

Verifica-se que a decisão final que desclassifica o delito, considerando-o de natureza disciplinar, implica, também, na absolvição do réu, nos termos do artigo 439, letra “b”, do Código de Processo Penal Militar.

Aqui também, constatou-se a existência do fato, a sua materialidade e autoria, decidindo-se não existir qualquer causa excludente de ilicitude, como ocorre na primeira modalidade de decisão judicial, já discorrida.

Dentre as diferenças entre ambas as hipóteses, pode-se salientar que numa, antes da ação penal, a questão é decidida pelo Juiz de Direito Auditor e noutra põe-se fim a ação penal por decisão do Colegiado de Juízes.

Tanto numa decisão judicial quanto noutra, a Justiça Militar, por meio da autoridade judiciária competente, aplica a norma penal castrense ao caso concreto, decidindo sobre matéria administrativa disciplinar.

2) - Dos casos previstos pelo Código Penal Militar

A lei substantiva penal castrense, de modo inovador, previu, em alguns tipos penais, a possibilidade de a autoridade judiciária militar desclassificar o delito, considerando-o uma infração disciplinar.

Isso é possível nos seguintes casos:

Lesão corporal de natureza levíssima (Art. 209, § 6º, do CPM); furto atenuado ou mínimo (Art. 240, §§ 1º e 2º, do CPM); apropriação indébita atenuada (Art. 248 e 249 e o seu parágrafo único do CPM), de acordo com a regra do artigo 250 do CPM; estelionato e outras fraudes atenuados (Art. 251 e seus §§, de acordo com o que dispõe o artigo 253 do CPM); dano atenuado (Art. 260, parágrafo único do CPM); e cheque sem fundos (§ 2º do artigo 313 do CPM).

Em todas essas infrações penais, se o agente é primário e é de pequeno valor a “res delectiva”, pode o juiz considerar a infração como disciplinar. Aqui o termo juiz se refere ao ato singular do Juiz-Auditor ou ao ato do próprio Colegiado.

Entendeu o legislador que, para questão de pequena monta, no Direito Penal, o juiz decidisse ser o fato de natureza disciplinar.

3) - Das razões da desclassificação pelo juiz

No Direito Penal Moderno verifica-se a tendência de tornar a pena cada vez mais humanitária, vendo-se com progresso a substituição da pena privativa de liberdade pela pena restritiva de direitos e pecuniária, quando o agente é primário e o crime não é de maior gravidade.

Tudo isso visa, sem retirar o caráter de retribuição punitiva ao infrator, a possibilitar que ele não sofra demasiadamente no cárcere ao lado de contumazes e perigosos deliqüentes, dificultando sua reeducação e ressocialização.

Pois bem, a Lei Penal Castrense, com avanço, acolheu o princípio da insignificância para os crimes de pequena monta, também conhecido como crimes de “bagatella”, derivados do italiano, e que guardam semelhança com o princípio norte-americano de Bargain.

Evoluindo o Direito Penal Pátrio, recentemente o nosso ordenamento jurídico acolheu a lei de delitos de pequeno poder ofensivo, consubstanciado na revolucionária Lei 9.099, de 26/09/95, que trouxe medidas despenalizadoras como a composição civil extintiva de punibilidade (Art. 74); transação (aplicação imediata de pena alternativa Art. 76); representação nas lesões corporais (Art. 88) e a suspensão condicional do processo (Art. 89).

A referida lei não tem passado desapercebida na Justiça Militar, onde os juízes, inspirados também no aprimoramento e efetividade da medida justa, vêm aplicando-a, ainda que parcialmente. 1

Por questões de política criminal, de economia processual e até por ser mais adequada a punição disciplinar, em certos casos há de se evitar a ocorrência de um processo-crime, oneroso e moroso, dada as garantias processuais a que se deve observar no “due process of law”, garantindo-se o contraditório e a ampla defesa. A máquina judiciária deve ser empenhada para questões de maior complexibilidade, em que o dano delitual justifique a pena privativa de liberdade, ou outra pena que a substitua.

Em relação ao tema é de se consignar a lição de Jorge Alberto Romeiro 2 : “Baseado nos mesmos rígidos princípios de hierarquia e disciplina, proclamada esta a alma das Forças Armadas, na célebre frase do testamento político de 1752, de Frederico, o Grande -’Cette discipline fait l’âme des armées, tant qu’elle est en vigueur, elle sountiens les empires’ - torna-se difícil estabelecer, por esse motivo, uma diferenciação essencial de conteúdo, semelhante à do direito penal e disciplinar comum, entre os dispositivos do CPM e dos regulamentos disciplinares militares, cujos limites se estadeiam por vezes até esfumados. Haja visto certos ilícitos militares cuja configuação, como crime ou transgressão disciplinar, é confiada ao poder discricionário do julgador...”.

Diz ainda o festejado autor: “A diferença não é assim quantitativa ou de grau; é critério do legislador. Tão esbatida é a fronteira entre o direito penal militar e o direito disciplinar militar, que países como a Suíça (CPM de 1927, Arts. 180 a 214) e Israel (LJM nº 5715, de 1955, Art. 22) contemplam suas normas num único diploma legal.”

A jurisprudência também sinaliza no sentido da conveniência da punição administrativo-disciplinar em vez da prisão penal militar: “Nem sempre toda ocorrência consignada em tese na lei penal deve necessariamente ser convertida em procedimento contra o agente por parte do Estado “ (in Jurisprudência Penal Militar; 1977, págs. 259/264), bastando-lhe a aplicação de simples punição disciplinar, de efeito imediato é melhor corretivo a quem comete fatos leves, embora também constantes do CPM, salientando-se, de resto, que a prisão administrativa não tem ‘sursis’, o que produz melhor reflexo educativo na Corporação”. (Correição Parcial nº 688/83, Juiz - Cel. Odilon Camargo, in Jurisprudência Penal Militar, TJM/RS, 1983, pág. 419).

Torna-se importante então que a autoridade militar atente para as razões de desclassificação pelo juiz, para poder exercer o seu poder-dever, punindo adequadamente os seus subordinados, apoiados na decisão judicial que encerrou a discussão no caso concreto.

Aqui há de se frisar que no julgamento ocorrido na Justiça Militar, há subjacentemente a existência do julgamento hierárquico, este sempre feito pelo superior ao militar denunciado, o que, por si só, já impõe ao processado o exame da conduta do acusado, diante das regras disciplinares que norteiam a carreira militar.

4) - Da natureza da decisão judicial

Como a decisão desclassificatória, na Justiça Militar, de crime para infração disciplinar, pode ocorrer em dois momentos, far-se-á explanações separadamente. Convém destacar que cada uma delas põe termo à discussão sobre o fato que procou a apreciação do Judiciário.

Na primeira hipótese, quando inexiste a ação penal, o Ministério Público como “dominus litis” e “custus legis”, diante do procedimento que lhe chega às mãos, pela Polícia Judiciária Militar, diretamente, ou pela Polícia Judiciária Comum, por remessa do feito, pela ausência de atribuição na investigação, faz uma apreciação jurídica do ocorrido e, concretamente, se entender que o caso comporta a desclassificação para infração disciplinar, requer tal provimento do Juiz-Auditor, com a finalidade exclusiva de evitar o processo-crime por aquele fato e, objetivamente, ver o autor do fato responsabilizado administrativamente.

Assim, a decisão do Juiz-Auditor, definindo a natureza da infração, como disciplinar, tem o condão de descriminalizar o delito apurado pela Polícia Judiciária Militar.

Mas, tal decisão é de natureza interlocutória terminativa, pois põe fim à discussão do fato, na esfera criminal e na eventual relação processual.

Verifica-se, no entanto, que esta decisão judicial não comporta recurso específico o que a reveste com força definitiva, fato esse que entendo ser a causa do trancamento da relação processual.

Quanto à segunda hipótese, ou seja, aquela que é prolatada encerrando-se a ação penal, portanto, no julgamento do caso, decidindo-se o mérito da questão, após haver o trânsito em julgado , é ela a própria causa da absolvição do réu quanto ao crime, mas é a certeza, também, de que aquele fato se consubstanciou em verdadeira infração disciplinar, consoante a inteligência do artigo 439, “b”, do CPPM.

Note-se que, em ambas as decisões, foi afastada a existência de qualquer excludente de ilicitude, o que do contrário seria causa só do arquivamento do inquérito policial militar ou da absolvição criminal, justificando-se a ação policial, até então “sub judice”.

Na primeira decisão há o encerramento da relação processual, sem o julgamento do mérito, enquanto na segunda hipótese há o encerramento do processo criminal, diante da absolvição do réu, com o exame do “meritum causae”.

Tanto numa decisão quando noutra, há um título judicial indiscutível que irá prevalecer para efeitos na esfera civil e na esfera administrativa, como se pode ver a seguir.

5) - Da repercussão da decisão judicial no juízo civil e na administração pública.

O ordenamento jurídico é um só, não havendo lacunas nele que não possam ser solucionadas pelo caráter integrador de todo o sistema, e, ainda que haja dúvida no desfecho da questão, o Judiciário, quando provocado, deve decidir dando provimento à causa.

Nesse sentido não pode o juiz deixar de decidir. De inteira aplicação à espécie é a regra do artigo 126 do Código de Processo Civil que diz, “in verbis”:

“O juiz não se exime de sentenciar ou despachar alegando lacuna ou obscuridade da Lei. No julgamento da lide caber-lhe-á aplicar as normas legais, não as havendo, recorrerá à analogia, aos costumes e aos princípios gerais de direito”.

Quando o juiz aplica a norma ao caso concreto, a sua decisão deve harmonizar-se com o ordenamento jurídico e, por isso, existem regras, tanto no Direito Civil quando no Direito Administrativo, que irão expressamente dispor que certas decisões do juiz criminal deverão fazer coisa julgada, não cabendo mais a sua discussão, quanto ao mérito, fazendo-se repercutir os seus efeitos naquelas esferas.

São os casos do artigo 1525 do Código Civil e o do art. 138, § 3º, da Constituição do Estado de São Paulo, que estabelecem como regra, o primeiro no âmbito do Direito Civil e o segundo no âmbito do Direito Administrativo, que a decisão criminal que definir a existência do fato e a sua autoria, ou de modo contrário, excluí-los, tem repercussão naqueles ramos do Direito.

Como se pode ver não há invasão de uma competência em outra instância, mas apenas comunicabilidade de instâncias, devendo prevalecer uma decisão do juízo criminal sobre outras decisões, para se evitar insegurança na prestação jurisdicional, com a existência de decisões distintas e contraditórias, entre si, acerca de uma mesma matéria.

Na matéria administrativa ocorre o mesmo fenômeno, mas tanto aqui, quanto na responsabilidade civil, reconhece-se as suas independências e prerrogativas de competências, de forma que a Administração Militar, por exemplo, pode antecipar-se à decisão do juízo criminal e demitir o seu servidor, pelo fato grave que praticou, ou não puní-lo disciplinarmente porque houve uma causa de justificação.

A comunicabilidade de instâncias fica patente quando a decisão judicial é condenatória, e sob o ensinamento de Maria Sylvia Zanella, Di Pietro 3 : “Quando o funcionário for condenado na esfera criminal o juízo civil e a autoridade administrativa, não podem decidir de forma contrária, uma vez que, nessa hipótese, houve decisão definitiva quanto fato e à autoria, aplicando-se o artigo 1.525 do Código Civil.

Aqui vale a pena transcrever o entendimento sobre a matéria manifestado por José Cretella Júnior 4 :

“As jurisdições civis, administrativa e penal são manifestações de soberania do Estado. Não devem opor-se. Ao contrário, devem ser harmônicas, servindo como referencial necessário à sentença pena.”

Se, no âmbito penal, o juiz decidir, condenando, que houve fato ou quem é o seu autor, a sentença penal condenatória repercutirá no âmbito administrativo, obrigando à reparação do dano, e caberá ação regressiva contra o funcionário responsável nos casos de culpa ou dolo.

Se, no juízo penal, o juiz decidir, absolvendo, concluindo pela inexistência do fato, pela falta de provas de autoria do fato ou ainda pela existência do fato, mas sua desvinculação com o agente imputado, ou nos casos de excludentes de ilicitude, nesses casos haverá comunicabilidade de juízos, impondo-se a decisão penal sobre a decisão administrativa. Para reforçar esse raciocínio vale lembrar a norma do artigo 65 do CPP: “Faz coisa julgada no civil a sentença penal que reconhecer ter sido o ato praticado em estado de necessidade, em legítima defesa, em estrito cumprimento do dever legal ou no exercício regular de direito.”

Ao contrário, havendo prova, insuficiente, ineficiente ou deficiente, não caberá a reintegração, porque restou um resíduo, um “minus”, um “quantum”, mas o bastante para a demissão do funcionário público, porque não obstante tênue, a prova serviu para o delineamento do ilícito administrativo, em torno do qual gravitou o processo administrativo condenatório, que atingiu seu clímax com a aplicação da pena de demissão.

Observa-se, por fim, que resíduo é não só o “quantum” de ilícito administrativo, que se agrega ao ilícito penal, sem com ele se confundir, mas também é aquilo que restou do próprio ilícito penal, quando, apreciado o fato judiciário, foi o acusado absolvido, em razão da deficiência probatória.

No primeiro caso, o resíduo é um “aliud”, no segundo caso, é um “minus”; no primeiro caso trata-se de resíduo heterogêneo; nos dois casos, porém, resta o ilícito administrativo, bastante para a condenação administrativa5 .

Absolvido no juízo penal, não tem o funcionário público o direito subjetivo de pleitear a reintegração, se restou um resíduo, um “minus”, suficiente para caracterizar o ilícito administrativo insuficiente, entretanto, para caracterizar o ilícito penal.

Se, porém, o funcionário foi também submetido a processo penal, porque a falta cometida configura ilícito penal, cumpre indagar do fundamento da sentença penal absolutória, cuja repercussão, na esfera administrativa, em certos casos, possibilitar a reintegração do funcionário ao serviço público e no mesmo cargo.

A propósito da comunicação das instâncias, não só a doutrina contempla esse fenômeno, mas a própria jurisprudência, a qual é oportuno serem citadas:

“Efeito primordial na condenação criminal é o de tornar certa obrigação de indenizar o dano resultante do crime, como está no artigo 74, I, do CP. O juízo civil não poderá reabrir a questão sobre a responsabilidade civil pelo fato reconhecido como crime, por sentença com trânsito em julgado. Sobrestado o curso da ação civil, para os efeitos do artigo 110 do CPC e verificado então, a existência de sentença criminal condenatória pelo mesmo fato dado como causante da responsabilidade civil, deve ela ser tida como pressuposto incontornável da obrigação de indenizar, não cabendo reexaminar os fundamentos do julgado, para considerar a ocorrência de excludentes de criminalidade que, todavia, não foram admitidos na instância criminal (Ac. Unân. da 1ª Turma do STF, de 3.8.79, no Re 87.646-4/RJ, Min. Luiz Rafael Mayer; DJ 24.8.79, pág. 253).” Veja-se no mesmo sentido AC Unân. da 2ª câm. do TJPR de 1º.6.88, na apelação 1422/87 rel. Desemb. Ossian França; P. Jud. 27/93 e Ac. da 2ª Câm. do TJPR de 22.6.88, na apel. 1062/87, rel. Desemb. Oswaldo Espíndola; P. Jud 27/72.

Acontece que a decisão judicial na Justiça Militar, desclassificando o fato para infração disciplinar, nos seus dois momentos, seja na decisão interlocutória terminativa ou na sentença de absolvição, reveste-se de caráter declarativo-constitutivo. Pode-se afirmar que, por um lado o fato apurado é um ilícito e de autoria definida e, por outro lado, constitui uma situação nova, ou seja, que o fato desclassificado é de natureza disciplinar, portanto, não pode ser mais discutido o seu mérito pela Administração Militar, a não ser nas prerrogativas que lhe são afetas, tais quais a dosagem da punição, dado o seu caráter de discricionariedade e de competência para punir.

Reconhecido, portanto, no juízo castrense, que há falta residual na conduta existente e comprovada nos autos, essa situação vincula o ato do Comandante do policial-militar, autor do ilícito administrativo, de forma a impor àquele o seu poder-dever de punir, não mais cabendo à Administração a apuração do mérito daquele fato, pois este já foi definido.

O afastamento da punição do policial militar, diante da decisão judicial que estabelece que o seu ato é infração disciplinar, por seu Comandante, é um ato de incongruência jurídica, imoralidade administrativa e desvio de finalidade, tornando-se nula a sua prática e sendo de questionável responsabilidade a sua adoção. Esse assunto será mais detidamente analisado no item 9 deste trabalho.

6) - Da discricionaridade do administrador militar na punição do policial-militar.

Uma vez que o fato apurado pela própria Administração Militar, nas funções de Polícia Judiciária Militar, resolveu-se com a decisão judicial, ora do Juiz de Direito Auditor, ora do Conselho de Justiça, por reconhecer-se o seu caráter de infração disciplinar, caberá a autoridade militar apreciar a gravidade de sua prática, classificando-a, para fins de punição disciplinar.

Veja-se que, por razões de política criminal, economia processual e até por certeza de que a medida disciplinar punitiva é suficiente para o caso concreto, o legislador elegeu alguns tipos penais-militares, permitindo-se a sua desclassificação ou descriminalização, para que aquele mesmo fato, dada a sua pequena gravidade, não passando impune, fosse reprimido na esfera disciplinar.

A discricionalidade da autoridade militar vai residir na prática de atribuições da esfera de sua competência, apenação do ilícito administrativo, diante das regras existentes no Regulamento Disciplinar da Corporação, cabendo-lhe dosar a pena, de acordo com o grau de culpabilidade do seu subordinado.

No Estado de São Paulo, o Regulamento Disciplinar foi aprovado pelo Decreto Estadual nº 13.657 de 09 Nov 43 e alterado pelo Decreto nº 37.111 de 27 Jul 93, que, à semelhança do Regulamento Disciplinar do Exército, rege a Polícia Bandeirante. Encontra amparo na Lei Básica das Polícias Militares, o Decreto-Lei Federal nº 667/69, e será o diploma a ser aplicado pela autoridade militar na apuração de responsabilidade de seu subordinado.

Dentre as regras de aplicação do Regulamento Disciplinar pode-se verificar a moralidade daquele procedimento insculpido na locução do seu artigo 44 que dispõe:

“A punição deverá ser aplicada com Justiça e imparcialidade. É necessário firmar nos subordinados a convicção de que o superior, no caso dessa atribuição, se inspira somente no sentido do dever.”

A autoridade militar deve atentar para o caráter das punições disciplinares, que no dizer do Tenente-Coronel da Polícia Militar do Estado de São Paulo, José Antonio Davanzzo, tem caráter educativo e repressivo6 .

Como conceito de discricionalidade, para explicitar o poder-dever de autoridade militar, naquela atividade, pode-se citar o seu entendimento, pelas palavras de Celso Antonio Bandeira De Mello7 , “Discricionalidade, portanto, é a margem de liberdade que remanesce aos administrados para eleger segundo critérios consistentes de razoabilidade, um, dentre pelo menos dois comportamentos cabíveis, perante cada caso concreto, a fim de cumprir o dever de adotar a solução mais adequada à satisfação da finalidade legal, quando, por força da fluidez das expressões da lei ou da liberdade conferida no mandamento, dela não se extrair objetivamente, uma solução unívoca para situação vertente.”

Assim, a decisão para punir o policial-militar é da autoridade militar, mas vinculado o seu ato à decisão judicial, que examinou o mérito da natureza do fato, definindo-o como infração disciplinar. Cabe-lhe, portanto, fazer o enquandramento disciplinar, dosando a punição administrativa, por critérios de conveniência e oportunidade, satisfazendo assim a finalidade da Lei Penal Militar.

Agora, como resolver a punição do miliciano, se o fato de natureza disciplinar é atípico ao Regulamento Disciplinar, ou seja, nele não está expressamente definido como falta disciplinar? Estaria o fato prejudicado? A resposta é negativa pelas razões que serão abordadas no próximo item.

7) - Atipicidade da conduta desclassificatória

É o princípio de que cuida Maria Sylvia Zanella Di Pietro8 , afirmando que “ao contrário do direito penal, em que a atipicidade é um dos princípios fundamentais, decorrente do postulado segundo o qual não há crime sem lei que o preveja (nullum crimem, nulla poena sine lege), no direito administrativo prevalece a atipicidade; São muito poucas as infrações descritas na lei, como ocorre com o abandono de cargo.

A maior parte delas fica à discricionalidade administrativa diante de cada caso concreto: “é a autoridade julgadora que vai enquadrar o ilícito como “falta grave”, procedimento irregular, ineficiência no serviço, incontinência pública, ou outras infrações previstas de modo indefinido na legislação estatutária.”

E é o que ocorre na sistemática do Regulamento Disciplinar da Milícia Bandeirante, pois ao lado do enorme rol de infrações típicas do artigo 13, reunindo ao todo 132 faltas disciplinares, há um número indeterminado de infrações atípicas, previstas na letra “b”, do parágrafo único, do artigo 12, daquele Regulamento, que devem ser cominadas, de acordo com a gravidade da transgressão, com a classificação prevista no parágrafo único, do artigo 15, daquele Diploma.

Assim, de forma técnica, a autoridade militar pode e deve fazer o enquadramento disciplinar compatível para a infração disciplinar reconhecida pela Justiça Militar.

8 - Da matéria de cunho administrativo e de competência da Justiça Castrense.

É certo que a competência da Justiça Militar é de, com fundamento constitucional e infraconstitucional, decidir acerca da matéria criminal, no processo dos policiais-militares que venham a praticar crimes militares e, ao órgão de segundo grau, desta Justiça Especializada, cabe decidir em grau de recurso, àquelas matérias decididas pela primeira instância, além de decidir pela perda da patente e do posto dos oficiais da Polícia Militar e, por inovação da Constituição Federal de 1988, pela perda da graduação das praças (artigo 125, §4º, “in fine”).

Pode-se acrescer como prerrogativa deste juízo especializado a descriminalização do fato, em certos casos, de insignificância penal, reconhecendo ser o fato infração disciplinar.

Poderia até se justificar esse alargamento da competência Castrense, dado que a constituição de seu juízo traz implícito o julgamento hierárquico do réu, diante das normas disciplinares da Instituição Militar.

No Estado de São Paulo, cabe exclusivamente ao Tribunal de Justiça Militar conceder aos policiais militares a medalha de valor militar, disciplinada pela Lei nº 2.248, de 04/VII/53, após formal procedimento administrativo.

Como se vê são vários os atos do Judiciário Militar que repercutem na esfera da Administração Militar, sem com isso estar diante de uma interferência de competência entre os poderes, em face da previsão legal.

Mais autêntica, então, é a desclassificação da matéria criminal para matéria administrativa, definindo-a, uma vez que a decisão judicial ocorre por um Colegiado misto, formado pelo Juiz de Direito Auditor e pelos Juízes Militares.

9 - Das decisões refratárias de não punição do autor da infração disciplinar.

Como já discorrido, espera-se que a Autoridade Militar puna o seu subordinado, diante do fato que ele deu causa, mas é de se reconhecer algumas hipóteses em que a punição disciplinar estaria prejudicada.

Quando a autoridade militar, antecipando-se à decisão judicial, resolve punir o seu subordinado, após competente apuração no âmbito administrativo. Neste caso, então, já não mais há motivo para a punição disciplinar depois da decisão judicial desclassificatória, pois senão, ocorreria o “bis in idem”.

Partindo-se da hipótese em que no procedimento investigatório não se conclua quem seja o autor do fato, nem a nível de indícios. Se o fato for desclassificado pelo juízo castrense, sem aquela elucidação, sem dúvida alguma, haverá prejuízo para a punição disciplinar, sob pena de injustiça, a menos, é claro, que o fato venha a ser desvendado posteriormente pela Administração Militar.

No caso de a decisão judicial ser remetida à autoridade militar e esta, mediante procedimento competente para apreciação do fato, venha a se deparar com fatos novos, ou seja, outras provas acrescidas ou modificadoras, daquelas que levaram ao Judiciário Militar decidir, far-se-á justiça evitando-se punir o subordinado. Aqui o julgamento da questão está adstrito à competência da autoridade militar.

Se, por outro lado, houver reconhecimento de autoria, materialidade e a decisão judicial desclassificar o fato para o âmbito disciplinar, afastando a ocorrência de qualquer excludente de ilicitude, então, outra alternativa não restará à autoridade militar senão punir o seu subordinado. Mesmo nesse caso, é de bom alvitre que se possibilite ao indigitado manifestar-se sob a égide do contraditório e da ampla defesa (artigo 5º, inciso LVI, da CF/88), formalizando, assim, o devido processo legal.

Nesse sentido, há expressa disposição no art. 4° da Constituição Paulista de 1989.

Pode-se, nesse passo, citar que esse procedimento também ocorre no caso da responsabilidade civil do Estado, previsto constitucionalmente no §6º, do artigo 37, da CF/88. Havendo a ocorrência de um ato ilícito, praticado pelo servidor, já reconhecido ou não pelo Judiciário, deve-se examinar a conduta do agente estatal para, em se definindo que o mesmo atuou com culpa ou dolo, sofrer, então, a ação de regresso.

Caberia, dessa maneira, à autoridade militar, nas hipóteses mencionadas, decidir motivadamente quanto ao desfecho do caso, informando, após, a autoridade judiciária castrense.